Arquivo

Default ou não default é mais do que semântica na Argentina

A presidente argentina, Cristina Fernández, se dirige a simpatizantes em um pátio da Casa de Governo, na noite de 31 de julho, depois de um discurso ao país para explicar a situação do pagamento da dívida. Foto: Casa Rosada.
A presidente argentina, Cristina Fernández, se dirige a simpatizantes em um pátio da Casa de Governo, na noite de 31 de julho, depois de um discurso ao país para explicar a situação do pagamento da dívida. Foto: Casa Rosada.

 

Buenos Aires, Argentina, 4/8/2014 – O suposto default argentino, um caso inédito no capitalismo mundial, estabelece um precedente jurídico, político e financeiro, que exige medidas concretas, sobre o tênue limite entre o legal, o ético e o criminal da usura nos negócios.

A discussão envolve atores diversos. Desde os que a partir dos setores financeiros ortodoxos consideram que, ao não cumprir a sentença do juiz norte-americano Thomas Griesa, a Argentina entrou em suspensão de pagamentos (default, em inglês), até os que afirmam que honrou seus pagamentos e que é alheia que os fundos cheguem ao seu destino.

“Impedir que alguém pague não é default”, declarou a presidente Cristina Fernández em rede nacional no dia 31 de julho, após uma fracassada reunião com os chamados fundos abutres, os altamente especulativos, para destravar o conflito. “Agora inventaram uma nova: o default seletivo. Não existe. Impedir que alguém cobre não é default. Disse a eles que teriam de inventar uma nova palavra”, ironizou.

No dia 30 de julho, em uma reunião em Nova York com funcionários argentinos, o mediador determinado pelo tribunal do Distrito Sul da cidade, Daniel Pollack, rejeitou a nova oferta de troca da dívida externa argentina, que entrou em não pagamento em 2001, no valor de US$ 100 bilhões.

Foram oferecidas condições semelhantes às aceitas pelos 92,4% dos possuidores de bônus da dívida em default, durante as trocas negociadas em 2005, durante a presidência do falecido Néstor Kirchner (2003-2007) e em 2010, já com sua sucessora no governo.

Nesse dia vencia o prazo para creditar nas contas desses possuidores, chamados “bonistas” na Argentina, o depósito em uma cota de US$ 539 milhões, que o governo fez para o vencimento de 30 de junho no Bank of New Yok (BoNY) e que foi paralisado por sentença de Griesa.

“Infelizmente, não houve acordo e a Argentina entrará em iminente default”, comunicou Pollack. “O default não é apenas um tecnicismo. É um evento real e doloroso que prejudicará as pessoas”, ameaçou. Durante uma audiência no tribunal, em 1º deste mês, a parte argentina tentou, sem êxito, conseguir que o juiz mudasse o mediador por causa dessas expressões.

Algumas qualificadoras de risco já colocaram a dívida argentina em “default seletivo”, enquanto o juiz evitou a palavra durante essa audiência, embora tenha dito que “o que está claro é que não houve pagamentos”. “Fala-se de engendramentos: default técnico, default Griesa, Griefault. Ninguém sabe caracterizá-lo porque é novo, afirmou o ministro da economia da Argentina, Axel Kicillof.

Alejandro Drucaroff, advogado especialista em bancos e finanças, apontou à IPS que as trocas aceitas por quase todos os credores “implicaram quitação de capital e juros muito importantes e a aceitação pelos possuidores de bônus de prazos muito longos para o pagamento”. Em troca, a Argentina os abonou pontualmente até agora, ressaltou. O resto (holdouts, em inglês), apenas 7,6% do total, não aceitou. Alguns venderam seus títulos não pagos a fundos abutres, os altamente especulativos, cujo negócio é comprar bônus “lixo” para depois tentar recuperar na justiça 100% do valor nominal.

Griesa iniciou em 2003 o julgamento contra a Argentina, por demanda de dois desses fundos, com 1% da dívida original. Em 2012, o juiz determinou que lhes fosse pago à vista 100% do valor mais os juros, o que soma US$ 1,5 bilhão. Em 16 de junho, a Suprema Corte dos Estados Unidos avalizou essa sentença, que também proibia a Argentina de pagar a dívida reestruturada se não fizesse o mesmo com os demandantes.

“Essa proibição, sem fundamento jurídico algum e ditada à margem de suas faculdades legais, não tem efeito prático porque a Argentina, de todo modo, pagou no vencimento”, pontuou Drucaroff. Mas, “advertido” por Griesa de que transferir os fundos para as contas dos possuidores de bônus violaria sua sentença, o BoNY reteve o pagamento.

“Griesa não tem faculdades para impedir que a Argentina pague dívidas a terceiros que não são parte do julgamento. Tampouco tem faculdades sobre fundos que não são do país, não pode embargá-los”, destacou Drucaroff. Segundo o advogado, “não há default, mas, em troca, se apresenta uma situação jurídica absolutamente inédita: o BoNY deverá dar conta aos 92,4% e à Argentina por não cumprir sua função. Poderá dizer que agia assim por que da sentença de Griesa se depreende que pode ser acusado de desacato ao juiz e, a meu ver, nesse caso, Griesa também será responsável por ter impedido que o dinheiro chegue aos credores”.

Para Fernanda Vallejos, economista da Universidade de Buenos Aires, a letra dos contratos estabelece que o default só se produziria “se a Argentina não pagasse. Mas o país não só tem vocação e capacidade de pagamento como já pagou e continuará pagando”. A seu ver, isso independe das qualificadoras de risco, “que em seu afã de habilitar o negócio financeiro aos abutres, pela cobrança de seguros contra default”, inventam figuras como o default seletivo, “que não tem nada a ver com a realidade, nem com a solvência financeira da Argentina.

O governo argentino diz que o problema não são os US$ 1,5 bilhão, exigidos pelo juiz e pelos demandantes, mas em como essa dívida se multiplicaria se os donos de bônus que aceitaram as quitações entrassem na justiça para receberem o mesmo, ao dar melhores condições a outros. O governo cita valores de até US$ 500 bilhões, o que traria de volta a gravíssima crise que foi originada pelo não pagamento de 2001.

“Semelhante queda das reservas não afetaria apenas o comércio internacional, mas tornaria ingovernável a paridade do câmbio; portanto, o resto das reservas acabaria tendo a mesma sorte, acabariam fugindo na vã tentativa de frear a alta do preço do dólar”, apontou o analista político Alejandro Horowicz.

Vallejos advertiu que a sentença desestimula toda reestruturação de dívida soberana, por favorecer “uma pequena minoria, que corresponde à face mais selvagem do capital financeiro internacional. Quem aceitaria uma reestruturação com a Argentina, se brigando em tribunais de algum país se pode obter esse nível de rentabilidade cobrando 100% do valor nominal?”, perguntou.

Para a economista é necessário um marco regulatório internacional “que preserve os processos de reestruturação de dívida soberana e coloque limite na absoluta desregulamentação dos mercados financeiros que avassalam Estados e submetem os povos”.

Os fundos abutres já estão na mira de governos e organismos internacionais, nos quais cresce o consenso de que devem ser controlados. Quase todos eles “estiveram envolvidos na última crise financeira internacional (iniciada em 2008), mediante manobras de especulação muito variadas e, em muitos casos, diretamente criminosas”, ressaltou Drucaroff.

“Teoricamente, boa parte do sistema financeiro formal os repudia e os considera contrários à ética dos negócios. Mas não se dá nenhum passo concreto para limitar suas atividades que, em alta porcentagem, acontecem por intermédio de paraísos fiscais”, afirmou Drucaroff. Um tema no qual o default ou não default argentino é apenas uma ponta do iceberg. Envolverde/IPS