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As criadoras de gado são agentes de mudança na Índia

Suma Bhen, criadora de camelos no Estado indiano de Gujarat, e suas duas filhas. Foto: Athar Parvaiz/IPS
Suma Bhen, criadora de camelos no Estado indiano de Gujarat, e suas duas filhas. Foto: Athar Parvaiz/IPS

 

Kutch, Índia, 25/6/2014 – Quando foi convidado para ser membro executivo da associação de criadores de camelo, Sangan Bhai, um homem humilde da região indiana de Kutch, no Estado de Gujarat, sugeriu que o posto fosse ocupado por sua mulher, em uma decisão que surpreendeu a comunidade. A razão, segundo explicou à IPS, é simples. Ao contrário dele, ela sabe ler e escrever e conhece tanto sobre criação de camelos como qualquer outro.

Meera Bhen, a única mulher em sua comunidade que foi à escola, embora só até o quarto grau, aceitou de bom grado o desafio. “Meu pai era muito favorável à minha educação, mas morreu quando eu era menina e tive que deixar a escola. Mas continuei lendo e escrevendo”, contou à IPS.

Sua perseverança valeu a pena. Agora é uma das poucas mulheres da vasta região árida chamada Lakhpat que sabe ler, escrever e tem conhecimentos de aritmética básica, habilidades cruciais nessa comunidade de pastores, com pouca educação formal, mas com um conhecimento sem igual sobre gado. Além disso, agora Meera Bhen faz história com uma iniciativa própria: a Kutch Unt Uchherak Maldhari Sangathan (Kuums), uma associação de criadores que tem 350 integrantes e começa a dar frutos.

“Ela foi a primeira a sugerir vendermos o leite de camela”, disse à IPS o presidente da Kumms, Bhikha Bhai Rabari. “Entramos em contato com uma companhia láctea e quando o projeto estiver implantado nos pagarão o dobro por nossos produtos”, afirmou. Um litro de leite de camela custa entre 17 e 20 rúpias (cerca de US$ 0,30), com o que é muito difícil sobreviver para esta gente seminômade que, se acredita, emigrou para a região de Kutch vinda da província paquistanesa do Balochistão, há aproximadamente mil anos.

Cerca de 37% dos 300 criadores se ocupam de manadas com 30 a 60 camelos. Com poucos mercados formais para vender o leite, são obrigados a depender das rações de alimentos entregues pelo governo. Há tempo os criadores – chamados maldharis – reclamam uma renda complementar.

Décadas atrás ganhavam a vida oferecendo os camelos como meio de transporte ou vendendo os machos por um alto preço. Mas, com a modernização dos veículos e a construção de redes viárias nas zonas rurais da Índia, estão cada vez mais marginalizados. Precisamente esse é o problema que Meera Bhen queria solucionar quando teve a ideia da associação.

Se a iniciativa prosperar, se converterá na primeira empresa a comercializar leite de camela no país. O projeto original, enviado ao governo estadual pela União Leiteira do Distrito de Kutch, prevê a criação de uma unidade de processamento com uma capacidade entre dois mil e 2.500 litros. O objetivo do empreendimento seria duplo: oferecer uma alternativa de sustento para os maldharis e promover o aumento no consumo de um leite muito nutritivo, com menos gordura do que o de vaca e com mais nutrientes por unidade.

Gujarat também é onde nasceu a cooperativa láctea Amul, que em 2012 acordou dar a marca e vender o leite de camela, o que fazia o projeto parecer quase infalível. Mas, no ano passado, a organização se viu envolvida em um problema legal. Segundo a legislação sobre produção leiteira, considera-se “leite” apenas os de vaca, búfala, ovelha e cabra. Organizações não governamentais e especialistas jurídicos trabalham para reformar a lei para que também inclua o de camela, mas até que isso aconteça o projeto está parado.

Pouca gente sabe que por trás da proposta que ocupou as manchetes da imprensa nacional está uma mulher humilde. Mas entre os criadores, Meera Bhen é apenas uma das muitas mulheres que gozam de maior grau de autonomia e respeito em comparação com as mulheres nesse país de 1,2 bilhão de habitantes.

india_camellosMuitas famílias na Índia lamentam cada vez que nasce uma filha, mas não é o caso de Banni, uma área da região de Kutch. Ali se destina um búfalo para cada menina que nasce. Razia Saleem é uma delas. Esta estudante do quarto grau já conta com um patrimônio de aproximadamente US$ 3,4 mil em cabeças de búfalo. “Isao pertencer a ela”, contou seu pai, Saleem Nodae, apontando os animais pastando. Cada uma de suas três filhas tem uma parte de suas 80 cabeças.

Até serem suficientemente grandes para assumirem os animais, as meninas recebem uma parte da renda gerada pela venda de leite de búfala para “comprarem o que quiserem”, acrescentou Saleem. O resto é destinado à alimentação e ao cuidado do gado. As meninas usam seu dinheiro com inteligência.

Razia gastou o que economizou em três anos em um computador. “Esta é a era da tecnologia e quero me beneficiar disso”, afirmou a IPS. Por enquanto usa a máquina para praticar datilografia e digitação. “Começarei a usar a internet só quando realmente precisar”, acrescentou. “Quando se casar terá entre cinco e sete animais em seu nome. Poderá levá-los aos familiares de seu marido”, disse Saleem, acrescentando que isso lhe dá certo grau de independência.

Aproximadamente dez mil criadores vivem em Banni, com 168 mil búfalos, que são mais independentes economicamente do que os criadores de camelos, em parte graças à demanda consistente e aos mercados formais para o leite de búfala. Ainda assim, os criadores nômades têm uma vida simples, levando seus animais para pastar durante todo o ano e pernoitando em casas modestas durante a temporada das monções.

A vida para as criadoras está longe de ser fácil. Embora tenham certo grau de independência e respeito, sofrem uma desproporcional carga de responsabilidades comunitárias com a busca pela água em um entorno seco. Suma Bhen, à frente de uma família de criadores de camelo, contou à IPS que sua fonte de  água mais próxima é uma represa localizada a cerca de oito quilômetros de distância. A travessia sob o calor abrasador é feita à pé, com um camelo cuja energia deve ser cuidada para a volta.

“O camelo pode carregar 70 litros de água, que para nós duram dois dias”, afirmou Eisa Taj, marido de Suma Bhen. “E mal basta para nossas necessidades”, acrescentou. Seu filho, Saleh Alma, que ficou escondido durante toda a entrevista, ao final saiu com um papel onde se lia: “É muito difícil sem água. Queremos que o governo nos ajude”. Envolverde/IPS