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Chile promete apagar a sombra da ditadura em direitos humanos

O casal mapuche Catalina Marileo e Luis Aillapán, diante de sua casa em Puerto Saavedera, na região chilena de La Araucanía. Em 2002, eles e outros familiares foram presos, julgados pela Lei Antiterror e finalmente absolvidos, por pedirem a uns militares a construção de uma estrada em suas terras. Foto: Marianela Jarroud/IPS
O casal mapuche Catalina Marileo e Luis Aillapán, diante de sua casa em Puerto Saavedera, na região chilena de La Araucanía. Em 2002, eles e outros familiares foram presos, julgados pela Lei Antiterror e finalmente absolvidos, por pedirem a uns militares a construção de uma estrada em suas terras. Foto: Marianela Jarroud/IPS

 

Santiago, Chile, 25/6/2014 – O Chile se comprometeu este mês junto à comunidade internacional a impulsionar uma série de reformas para melhorar a situação dos direitos humanos no país e assim apagar as persistentes sombras da ditadura no fundamental setor das garantias da cidadania.

Avançar sobre os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, reformar a polêmica lei antiterror, garantir os direitos humanos dos povos originários e o acesso universal a educação e saúde, são alguns dos compromissos que o Chile acaba de assumir diante da Organização das Nações Unidas (ONU).

“Vemos sempre uma tendência de o Chile ir caminhando para o cumprimento de suas obrigações”, disse à IPS o representante regional para a América do Sul da Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, o italiano Amerigo Incalcaterra.

No dia 19, o país apresentou pela segunda vez em sua história o Exame Periódico Universal (EPU), um mecanismo do Conselho de Direitos Humanos da ONU. Diante do Conselho, na cidade Suíça de Genebra, o governo formalizou sua aceitação de 180 das 185 recomendações feitas pelos 84 Estados membros, tendo rejeitado cinco delas.

O Chile é um dos países latino-americanos mais conservadores e um dos seis em todo o mundo que proíbem o aborto em qualquer circunstância. O divórcio foi aprovado apenas em 2004 e o coletivo de lésbicas, gays, bissexuais, trans e inter-sexuais (LGBTI) ainda luta pelo reconhecimento legal dos casais do mesmo sexo. A educação e a saúde estão profundamente segregadas, o que gera uma espiral de desigualdade que a sociedade clama para que se reverta nesse país com pouco mais de 17 milhões de habitantes.

Outro grave problema afeta os povos indígenas, que carecem de reconhecimento constitucional e que protagonizam há décadas enfrentamentos com as autoridades e os poderes de fato para que sejam restituídas suas terras ancestrais que lhes foram retiradas.

As recomendações do Conselho de Direitos Humanos foram respondidas em primeira instância pelo governo do direitista Sebastián Piñera (2010-2014), poucas algumas semanas antes de deixar o poder em março. Piñera aceitou 142 recomendações, rejeitou 13 e “tomou nota” de outras 30, argumentando que não podia comprometer o cumprimento destas porque sua aprovação dependia do Congresso.

“A figura de ‘tomar nota’ foi um novidade em matéria de direito internacional porque as recomendações são aceitas ou rejeitadas”, disse à IPS a advogada do estatal Instituto Nacional de Direitos Humanos (INDH), Paula Salvo, cuja instituição participou da sessão em Genebra. No dia 30, de maio governo da socialista Michelle Bachelet enviou por escrito uma “correção” à primeira resposta, na qual aceita 180 recomendações e rejeita cinco.

Entre essas cinco estão duas do Vaticano, sobre o direito da pessoa humana desde a concepção e a proteção da identidade familiar tradicional, e outra sobre o direito da Bolívia a uma saída para o Oceano Pacífico.

Segundo Incalcaterra, a presidente compreendeu que muitas das recomendações rejeitadas por seu antecessor já faziam parte de seu programa de governo. Isso inclui a despenalização do aborto terapêutico, pelas suposições de inviabilidade fetal, risco de vida da mãe e violação. O projeto de lei para permitir o aborto induzido nestes casos começará a ser discutido no parlamento no segundo semestre deste ano.

Incalterra, cujo escritório regional fica em Santiago, explicou que a ONU reconhece que o aborto “é um tema complexo e de saúde”, mas o Conselho de Direitos Humanos pede que os Estados legislem sobre ele, e “estes três casos são o mínimo”. Além de legislar sobre o aborto terapêutico, o governo se comprometeu a reformar outras heranças da ditadura militar do general Augusto Pinochet (1973-1990), como a Lei Antiterrorista, que é aplicada quase exclusivamente contra supostos delitos do povo mapuche, em sua luta pela restituição de suas terras ancestrais.

A lei aplica altas sanções, realiza duplos processos pela jurisdição civil e militar e permite testemunhas sem rosto, entre outras anomalias. O governo se comprometeu a não aplicar a lei contra os mapuches e a respeitar seus direitos humanos. Outro desafio ditatorial, que persiste após 24 anos de democracia, é a jurisdição militar, que pode ser aplicada a qualquer caso envolvendo militares, como vítimas ou acusados. A reforma prometida fixa que os tribunais civis processarão os militares acusados de crimes comuns e que a justiça militar não alcançará nenhum civil.

Hernando Silva, pesquisador do Observatório Cidadão, disse à IPS que avaliaram positivamente que o Estado tenha aceito estas recomendações, mas o que esperam é “que de uma vez por todas sejam cumpridas, e não apenas assumidas”.

“Não é a primeira vez que o Chile se compromete a legislar sobre justiça militar ou a lei antiterror” sem concretizar a promessa, recordou Silva. “A própria Bachelet se comprometeu durante seu primeiro mandato (2006-2010) a não aplicar mais a lei antiterror ao povo mapuche, algo que cumpriu”, pontuou, acrescentando que “é preciso que desta vez, finalmente, se dê cumprimento cabal às suas obrigações em matéria de direitos humanos”.

Incalcaterra destacou que não há obrigatoriedade legal para cumprir as recomendações, mas advertiu que “todo o trabalho feito em nível internacional se baseia na boa fé. Se uma pessoa passa por esse exercício, dialoga com outros Estados e reconhece que essas recomendações são pertinentes e as assume, evidentemente tem que em mais quatro anos regressar a essa instância e dizer isto é o que foi feito”.

A finalidade do EPU é impulsionar a implantação dos direitos de todas as pessoas que vivem em um país, explicou Incalcaterra. Por essa razão, afirmou que “devemos vê-lo sempre como um apoio adicional, que ajuda os Estados a estabelecerem políticas públicas, melhorar sua legislação se necessário, estabelecer institucionalidade se não a tem, proporcionar recursos, estabelecer dados estatísticos para sua análise, campanhas, etc.”.

A revisão do cumprimento dos compromissos pelo Chile será dentro de quatro anos. Para o INDH, com um papel de supervisor estatal, há urgências a cumprir, com a ratificação dos tratados internacionais na matéria. Também é preciso contar com uma instância governamental de direitos humanos, um plano nacional e maior educação de seus alcances.

Sobre as vítimas da ditadura sem reparação, o INDH considera que deve ser criado um órgão de qualificação permanente para casos pendentes e dar assessoria jurídica e social às vítimas de tortura. A advogada Salvo destacou à IPS que a partir de agora “o governo tem de gerar um mecanismo permanente de revisão das recomendações da ONU, porque tem pela frente um desafio intenso”. Envolverde/IPS