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Carnificina dos ataques terroristas traumatiza pessoal médico

Enfermeiras tratam um menino ferido no hospital Lady Reading, em Peshawar. Foto: Ashfaq Yusufzai/IPS
Enfermeiras tratam um menino ferido no hospital Lady Reading, em Peshawar. Foto: Ashfaq Yusufzai/IPS

 

Peshawar, Paquistão, 20/11/2013 – A lembrança do sangue não abandona Ajab Gul. “Não consigo dormir”, disse o jovem de 25 anos, que trabalha em um hospital onde são atendidas as vítimas do terrorismo nessa cidade paquistanesa fronteiriça com o Afeganistão. O Hospital Lady Reading (LRH) de Peshawar recebe 98% das vítimas dos atentados terroristas na conflituosa província de Jiber Pajtunjwa.

O trabalho de Gul é especialmente difícil. Deve costurar e fechar os ferimentos dos pacientes que entram na unidade de acidentes e emergências do hospital, um dos maiores desse país do sul da Ásia. “Vejo imagens de rostos e corpos ensanguentados. À noite, ouço os gritos de mulheres, meninos e meninas que chegam para serem tratados”, contou à IPS.

A ferocidade e a frequência dos ataques suicidas ou com bombas em Jiber Pajtunjwa e nas Áreas Tribais Administradas Federalmente (Fata) estão deixando um impacto impossível de apagar na vida do pessoal médico, paramédico e de enfermagem da região. Seus ferimentos não são visíveis, mas são profundos. “A maioria de nós desenvolve problemas psicológicos”, afirmou Gul.

Peshawar, capital de Jiber Pajtunjwa, costumava ser uma cidade de paz. Mas depois que o movimento islâmico Talibã foi derrubado, em 2001, no Afeganistão, muitos de seus guerrilheiros cruzaram para o vizinho Paquistão em busca de abrigo nas zonas fronteiriças das Fata. O proscrito movimento talibã paquistanês Tehreek Taliban Pakistan (TTP) atacou por anos objetivos militares e o governo, e também lugares públicos como mercados e escolas. A polícia garante que ao menos 210 atentados cometidos em Peshawar desde 2005 foram obra do Talibã.

“O pessoal de saúde trata as vítimas e vê de perto as consequências traumáticas do terrorismo. Muitos tomam antidepressivos, tranquilizantes e pílulas para dormir e evitar os pesadelos”, disse o professor Arshad Javaid, diretor do LRH. Há 12 grandes hospitais em Jiber Pajtunjwa, onde vivem 22 milhões dos mais de 182 milhões de habitantes do Paquistão. Mas a maioria das vítimas do terrorismo é atendida nos 1.650 leitos do estatal LRH, que recebeu mais de seis mil vítimas desde 2005, afirmou à IPS. “Nossa missão é reduzir a mortalidade dos atentados terroristas”, acrescentou.

No entanto, estar próximo de membros amputados, rostos ensanguentados, lágrimas e gritos deixam suas cicatrizes. “Em meus sonhos continuo vendo os corpos carbonizados das crianças”, contou Rifat Bibi, enfermeira de 28 anos. “Muitas vezes acordo. Parte o coração ver as crianças sofrerem ou morrerem sem terem culpa de nada. Lembro de meus filhos, minhas irmãs, minha mãe”, detalhou. Segundo Bibi, alguns não suportam o estresse pós-traumático e “uma dezena de meus colegas de emergências pediram transferência para outros setores porque não podiam tolerar o estresse”.

Os dois ataques suicidas contra a igreja de Todos os Santos no dia 22 de setembro, que tiraram a vida de 80 pessoas, continuam vivos nas lembranças de Bibi. “Uma mulher, com o rosto coberto de sangue, chorou tanto sobre os corpos de seus dois irmãos mais novos mortos nesse dia que essa lembrança não me deixa em paz”, disse à IPS.

Jauhar Ali é presidente da KP Paramedics, empresa que opera em vários hospitais da cidade. Seus 560 paramédicos prestam serviços de diagnóstico e tratamento para todo tipo de paciente. “Mas nossa prioridade são os que são feridos em atentados com bomba. Devemos deter a hemorragia e vendar”, contou. “Mesmo quando não estamos trabalhando, as cenas continuam vindo em nossa mente”, disse Ali, que também cuida das radiografias. Em 2011, teve que atender três crianças de uma escola de primeiro grau gravemente feridas. “Elas me perguntaram quem as atacara e por quê. Não tinha resposta”. Agora, Ali se preocupa sem cessar com seus próprios filhos.

Amjad Ali, psiquiatra do LRH, diz que o pessoal da saúde também fica exposto a maus-tratos de familiares das vítimas. No dia 22 de setembro, “recebemos 233 vítimas em uma hora. A todas foi dado tratamento. Mas alguns parentes furiosos atacaram o pessoal”, pontuou. É comum enfermeiras e paramédicos desenvolverem problemas de saúde mental, ressaltou. Segundo ele, “esses profissionais caem em prantos quando veem pacientes com dor. Um em cada dez tem sintomas de doença psicológica. Examinei dezenas de trabalhadores da saúde aos quais receitei antidepressivos e terapia. Como é possível não ser afetado vendo tantos corpos ensanguentados?”, perguntou. Envolverde/IPS