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Brasil na contramão do combate ao tráfico de pessoas

O tráfico transforma as pessoas em mercadoria. Foto: Anistia Internacional

 

Rio de Janeiro, Brasil, 20/5/2013 – O Brasil contradiz a legislação internacional no combate ao tráfico de pessoas, porque a mantém invisível e impune. Isto incentiva este crime praticado com fins sexuais, trabalho forçado, adoção ilegal e transplante de órgãos, afirmam especialistas. As leis no país punem mais severamente o narcotráfico do que os casos em que o tráfico de gente é considerado crime.

A venda de drogas, por exemplo, tem penas de prisão entre cinco e 15 anos, em regime fechado, enquanto o tráfico para fins de exploração sexual é punido com um máximo de oito anos em regime semiaberto. “O tráfico de pessoas ainda é um crime invisível. O que ocorre atualmente é uma autêntica impunidade”, disse à IPS o juiz Rinaldo Aparecido Barros, membro do Grupo de Trabalho contra o Tráfico do Conselho Nacional de Justiça.

O Brasil registra, em média, por ano, mil casos de pessoas captadas para serem enviadas ao exterior, segundo o Ministério Público, que promoveu no Rio de Janeiro uma audiência pública, no dia 17, sobre “Tráfico de pessoas: prevenção, repressão, atenção com as vítimas e associações”. Seu objetivo foi reunir e trocar informação sobre o combate a esse crime, articular ações conjuntas para prevenir e reprimir o crime, e se concentrou no aspecto do país como emissor de vítimas de tráfico para o exterior.

O Brasil também é receptor do tráfico humano, e, além disso, há brasileiras e brasileiros captados para exploração dentro de suas fronteiras. Os três mil brasileiros e brasileiras levados ao exterior no último triênio foram submetidos em sua maioria a exploração sexual e trabalho escravo. “É um número significativo. Um grande número de pessoas é privado de sua dignidade. Os milhares de casos registrados a cada ano não representam o total, pois não sabemos quantos fugiram ao nosso controle”, disse a subprocuradora-geral brasileira, Raquel Elias Ferreira Dodge.

O sub-registro impede, de fato, conhecer o alcance real de vítimas enviadas ao exterior pelas máfias do tráfico humano, segundo os participantes do encontro. “Temos que trabalhar de forma mais eficaz para que estes crimes sejam condenados e sem indevidas dilações. O crime de tráfico humano fere a dignidade humana”, afirmou Dodge, integrante do Conselho Superior do Ministério Público Federal.

Dodge acrescentou que “a mão de obra escrava nega a personalidade do indivíduo e converte a vítima em uma mercadoria, que pode ser objeto de contrabando e tráfico”. Entretanto, o que torna mais difícil o combate ao tráfico de pessoas é o fato de no Brasil só existir o crime quando há exploração sexual ou trabalho escravo, disse à IPS o delegado da Polícia Federal no Rio de Janeiro, Erick Blatt.

“Descobrir o crime é muito difícil, somente diante da denúncia se pode iniciar uma investigação, sem que seja certo que o crime será provado”, pontuou Blatt, também representante da Interpol (Polícia Internacional) no Estado do Rio de Janeiro. “Em geral, as pessoas vão ao lugar de sua exploração voluntariamente, a maioria sem saber que terá seu passaporte retido”, afirmou.

A Organização Internacional para as Migrações define o tráfico humano como “a captação, o transporte, o traslado, a acolhida ou a recepção de pessoas, recorrendo à ameaça ou ao uso da força ou outras formas de coação”. Como coações cita “o rapto, a fraude, o engodo, o abuso de poder, ou uma situação de vulnerabilidade ou concessão ou recepção de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra, com fins de exploração”.

O código penal brasileiro só contempla, no Artigo 231, o crime de exploração sexual, e no Artigo 149 o de submeter a condição de escravidão. Ambos são punidos com penas leves, muito inferiores a crimes que não comercializam seres humanos e sua dignidade. A Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Organizado Transnacional, assinada em 2000 e que o Brasil ratificou em 2003, tipifica especificamente os crimes de tráfico de pessoas e propõe castigos amplos, algo que o país ainda não colocou em suas leis.

“Estamos na contramão do direito internacional. No Brasil o tema é tratado de maneira inadequada. É um crime contra a humanidade e atenta contra a dignidade humana”, queixou-se Barros. O juiz afirma que os instrumentos mais adequados para combater o tráfico de pessoas são as medidas que permitem o bloqueio dos ativos de suas máfias, para dessa forma atacar seu lado econômico.

O tráfico humano está em mãos de complexas redes de organizações criminais transnacionais que, no Brasil, captam mulheres geralmente pobres, sem perspectiva de ter uma vida melhor, disse à IPS a advogada Michelle Gueraldi, do Projeto Trama, que reúne organizações não governamentais dedicadas ao combate a esse crime. Quando emigram, elas o fazem voluntariamente, em ocasiões movidas pelo desejo de melhorar de vida, e acabam exploradas na Espanha, nos Estados Unidos, em Portugal e países do Caribe, entre outros lugares, explicou.

Por sua vez, Blatt acrescentou que o Brasil é receptor de mulheres vítimas do tráfico humano procedentes do leste europeu, especialmente Hungria e Polônia. “Este crime é uma violação dos direitos humanos. Trabalhamos na prevenção e proteção de suas vítimas. Também recebemos denúncias de casos em que notamos que a maioria dos recrutadores é de pessoas conhecidas e de confiança das vítimas”, detalhou Gueraldi.

Brasília estabeleceu, em fevereiro, o II Plano de Combate Contra o Tráfico de Pessoas, mas o desafio é levar à prática as políticas estabelecidas, informou a advogada. Por seu lado, Blatt reconheceu que fazer um acompanhamento das vítimas do tráfico humano em sua mobilização internacional é complexo para as policiais locais e a Interpol. “Se no Brasil é lento o sistema de comunicação entre a polícia e os procuradores, imaginem o que é a comunicação das polícias em nível internacional”, pontuou.

O tráfico de pessoas é um negócio extremamente lucrativo. Apenas na Europa, gera anualmente cerca de US$ 3,2 bilhões, segundo foi informado no encontro do Rio de Janeiro. O Escritório das Nações Unidas Contra a Droga e o Crime indica que ao menos 2,5 milhões de pessoas são vítimas de tráfico humano no mundo. Uma pesquisa deste organismo mostra que 58% dessas vítimas são objeto de exploração sexual e 36% de trabalho escravo. Envolverde/IPS