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Batalha pelo poder após prisão de jovens “felizes” no Irã

Imagem do vídeo caseiro iraniano Happy. O original agora figura como “privado” no YouTube.
Imagem do vídeo caseiro iraniano Happy. O original agora figura como “privado” no YouTube.

 

Washington, Estados Unidos, 23/5/2014 – É um título perfeito para qualquer site de sátira de notícias. “Jovens iranianos são presos por serem muito felizes em Teerã”, destacou um blog no jornal The New York Times, enquanto outros meios de comunicação publicaram artigos semelhantes em todo o mundo. A história real aconteceu há um mês, quando um grupo de três homens e três mulheres fizeram no Irã um vídeo musical caseiro imitando o clipe da música Happy (Feliz) da cantora norte-americana Pharrell Williams.

O vídeo com os seis jovens dançando alegremente em vários lugares da capital iraniana recebeu mais de cem mil visitas depois de sua divulgação no YouTube, antes que seu acesso fosse limitado à categoria privada. Seu diretor e os atores foram detidos no dia 20. As bailarinas no vídeo não usavam o véu obrigatório e os intérpretes de ambos os sexos se tocam uns aos outros em público, duas coisas proibidas na República Islâmica do Irã.

Mas o clipe foi publicado por outros sites da internet e uma das reproduções recebeu mais de 600 mil visitas desde sua divulgação no dia 19. O YouTube é ilegal no Irã e só pode ser acessado por meio de redes de navegação privadas. Após a prisão dos seis jovens a rede de notícias pública iraniana, Islamic Republic of Iran Broadcasting, divulgou um informe que mostra os participantes declarando que não sabiam que o vídeo em questão se tornaria público.

Ao final do vídeo original era possível ler: “Realizamos este vídeo como fãs de Pharell Williams em tão somente oito horas com iPhone 5s. Happy foi a desculpa para sermos felizes. Desfrutamos cada segundo de sua realização. Esperamos que coloque um sorriso em seu rosto”. Uma das jovens participantes, Reihane Taravati, confirmou sua libertação na rede Instagram, e artigos de outros meios indicam que o restante do grupo também foi libertado sob fiança, com exceção do diretor. O fato atraiu a atenção mundial.

“É mais do que triste esses jovens serem presos por tentarem difundir a felicidade”, afirmou Pharrell Williams em comentários publicados em suas contas nas redes sociais no dia 21. Christiane Amanpour, reconhecida apresentadora da rede norte-americana de televisão CNN, comemorou a libertação dos seis iranianos, depois de previamente ter colocado no Twitter sua opinião sobre o incidente. “Trágico. Iranianos comuns que não faziam nada de mau ficam presos em uma luta entre a linha dura e os moderados”, afirmou a jornalista britânica de origem iraniana.

“Não fosse o clamor internacional sobre o quanto foram ridículas essas prisões, é provável que esses jovens tivessem enfrentado o destino de outras pessoas detidas sem razão justificável e que passaram meses, ou mesmo anos, na prisão”, afirmou Hadi Ghaemi, diretor-executivo da Companhia Internacional pelos Direitos Humanos no Irã (ICHRI), uma organização independente com sede em Nova York.

Ghaemi disse à IPS que preocupa o diretor do vídeo ser usado como bode expiatório e que possa ser condenado à prisão depois que as autoridades pressionaram os demais participantes a darem “confissões forçadas” para atribuir-lhe total responsabilidade pelo clipe. “Esse é um momento crítico” para que o presidente iraniano, Hassan Rouhani, “cumpra as promessas que fez às pessoas que votaram nele”, acrescentou.

Embora nenhum membro do governo tenha feito comentários diretos sobre o caso, a conta semioficial de Rouhani no Twitter em inglês gerou certo alvoroço ao citar, no dia 21 deste mês, uma declaração que o presidente fez em 29 de junho de 2013. “A felicidade é o direito de nosso povo. Não deveríamos ser extremamente rigorosos com condutas provocadas pela alegria”, disse Rouhani naquela oportunidade.

Ghaemi, um especialista reconhecido internacionalmente em matéria de direitos humanos no Irã, apontou à IPS que Rouhani não se dedicou a modificar o contexto interno de seu país, extremamente centrado na segurança, desde sua eleição em junho de 2013, apesar de essa ser uma de suas promessas eleitorais. “De maneira muito delicada defende verbalmente uma liberdade maior, mas é muito tímido na ação”, afirmou.

Segundo o especialista, o comandante da polícia que aparece no noticiário oficial apregoando com orgulho a detenção dos seis jovens opera vinculado ao Ministério do Interior do Irã, que recebe ordens do gabinete de Rouhani. O presidente poderia usar seus poderes executivos para fazer cumprir alguma ação punitiva, mas ainda não o fez, acrescentou Ghaemi.

“Rouhani caminha por uma linha muito fina”, disse, por sua vez, Mohammad Ayatollahi Tabaar, especialista em política iraniana e professor na Universidade do Texas A & M. “Ele precisa do apoio popular, pois assim chegou ao poder. Ao mesmo tempo, não quer descontentar o aparato de segurança no Irã”, afirmou.

“Rouhani precisa dizer coisas para que as pessoas que votaram nele não pensem que foram traídas, mas isso é exatamente o que aconteceu com o ex-presidente Mohammad Khatami”, que governou entre 1997 e 2005, acrescentou Tabaar. Os primeiros anos do ex-presidente reformista são lembrados como uma época de restrições menos rígidas para a vida cotidiana. Khatami chegou ao governo com uma campanha progressista, mas no final não pôde aplicar reformas na sociedade iraniana devido à poderosa reação conservadora.

“Com Rouhani seguimos na etapa da lua de mel, mas isso não pode ser um déjà vu”, afirmou Tabaar que, no entanto, reconhece que o atual mandatário ainda tem uma considerável influência na política iraniana, e até poderia ter pressionado os responsáveis pelas prisões para que liberassem os jovens.

“É provável que não aprove o ocorrido. Está expressando seu descontentamento, e protesta contra a detenção dessas pessoas”, pontuou Tabaar, ao ser perguntado por que o presidente citou suas próprias declarações de 29 de junho de 2013 no Twitter. “É possível que esteja fazendo muitas coisas nos bastidores”, ressaltou, afirmando que, “por outro lado, não quer dizer diretamente porque não deseja provocar o círculo de poder conservador”.

Será possível Rouhani conseguir que esse círculo aceite um acordo entre o Irã e as potências mundiais para seu programa de energia nuclear, quando os conservadores criticam a atual estratégia de negociação do presidente e de seu chanceler, Javad Zarif? Tabaar acredita que é possível. “O líder supremo e ex-presidente do Irã, aiatolá Ali Khamenei quer um êxito limitado ao que pode representar um absoluto fracasso”, afirmou.

Tabaar assegurou que “um êxito limitado no sentido de ser reconhecido o direito do Irã ao enriquecimento de urânio (que é fundamental para a energia nuclear) e se serão levantadas muitas sanções para que a economia possa prosperar novamente. Mas, ele continuará retratando-o como um fracasso para que Rouhani não seja muito popular”.

Um analista em Teerã, que pediu para ter o nome revelado, apontou à IPS que o vídeo dos jovens e suas repercussões fazem prever as próximas batalhas internas de Rouhani. “Muito do que estamos vendo agora na área social é consequência de um ambiente com menos ênfase na segurança após as eleições de junho de 2013”, afirmou. “Dá para imaginar um vídeo de Happy se o ex-candidato presidencial conservador Saeed Khalili tivesse sido eleito?”, perguntou.

Segundo esse analista, “parte da batalha incluirá, como já presenciamos, tentativas de sabotar os esforços que Rouhani faz para reformular a imagem do Irã no plano internacional. Essa luta não será totalmente tranquila, nem limpa”. Envolverde/IPS