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A hora dos crimes econômicos da ditadura

Buenos Aires, Argentina, 12/3/2012 – Na medida em que avançam os julgamentos dos repressores da ditadura argentina (1976-1983), saem à luz delitos econômicos cometidos pelo regime contra mais de 600 empresários que perderam seus bens. “Não tínhamos militância política nem relação com o governo, mas nos roubaram tudo, as sete empresas e o avião da companhia. Não nos mataram por pura casualidade”, contou Alejandro Iaccarino, que era um próspero empresário leiteiro na década de 1970.

A previsão é que seu processo por reparação seja julgado neste ano, quando terminar o atual processo contra os dois oficiais de polícia acusados de sequestrarem ele e seus dois irmãos, “com o único objetivo de nos tirarem tudo”, assegurou Iaccarino à IPS. A previsível condenação dos dois réus, já presos, por privação ilegítima de liberdade e outros crimes conexos, é o requisito necessário para que seja possível abrir o processo sobre a reparação por danos econômicos e morais. O caso dos Iaccarino é um dos mais emblemáticos delitos econômicos do regime e, segundo informou à IPS a advogada da família, Florencia Arietto, “será a primeira vez que se pedirá ao Estado uma reparação patrimonial pelo despojo de bens”.

A Secretaria de Direitos Humanos da Nação está consciente de que o de Iaccarino não é um caso isolado e, por isto, criou uma unidade especial de investigação sobre crimes de lesa humanidade, cometidos com motivação econômica durante a ditadura. A unidade realiza um cadastro com mais de 600 casos de empresas liquidadas, que sofreram intervenção ou foram apropriadas com fins de roubo, ou por não se ajustarem ao modelo econômico da ditadura.

Estes casos ficaram eclipsados até agora pelos horrores da repressão que deixou o saldo de 30 mil desaparecidos, segundo fontes não governamentais. Entre eles os de empresas avícolas, têxteis e vinícolas, além de gráficas, siderúrgicas, fábricas de papel e bancos. Também houve empresários que colaboraram com o despojo, como cúmplices contra seus competidores ou como denunciantes de trabalhadores, sindicalistas ou advogados trabalhistas vinculados às suas empresas.

Em janeiro, um promotor da província de Jujuy pediu que os tribunais citassem como imputado o empresário Pedro Blaquier, dono do Engenho Ledesma, situado na localidade de Libertador General San Martin. O pedido é parte de um processo no qual se investiga uma blitz feita em 1976, quando foram detidas cerca de 400 pessoas, das quais 55 continuam desaparecidas. Nessa operação foram utilizados veículos com o logotipo dessa empresa agroindustrial.

Outro caso de empresários despojados é o da família Paskvan, com estabelecimentos avícolas nas províncias de Buenos Aires e Santa Fé. O caso foi aceito em 2011 pelo Tribunal Interamericano de Direitos Humanos, o inapelável tribunal continental com sede na Costa Rica. Também há o processo de Federico Gutheim, e seu filho Miguel, donos da empresa têxtil Sadeco, que foram sequestrados pela ditadura e, sob cativeiro, obrigados a renegociar um contrato de exportações com uma empresa de Hong Kong. Também se investiga o ocorrido com a firma Papel Prensa, fornecedora de papel para jornais. Seu dono, David Graiver, morreu em um acidente aéreo em 1976. Sua família foi sequestrada e obrigada, sob tortura, a repassar ações da empresa.

Entretanto, o caso Iaccarino tem uma característica única, segundo a advogada, que é a quantidade de provas documentais guardadas pela família, que revelam a trama do despojo. Os dois irmãos do empresário e seu pai foram sequestrados em novembro de 1976 na província de Santiago del Estero, onde a família tinha 25 mil hectares de campos e cabeças de gado. Quase simultaneamente, Alejandro Iaccarino e sua mãe foram capturados em Buenos Aires.

“Entraram sete pessoas armadas na garagem do prédio onde vivíamos e nos levaram”, contou o empresário à IPS. Os pais foram libertados em alguns dias, mas os três irmãos ficaram detidos 22 meses em 14 centros de detenção diferentes. A princípio eram informados que estavam “à disposição do PEN” (Poder Executivo Nacional), uma figura que dava certa legitimidade aos prisioneiros do regime de fato. Para tirarem seus bens, os mantiveram clandestinos, explicou sua advogada.

“É um caso incrível, duplamente grave, porque a partir de janeiro de 1977, com o vil objetivo de tirar-lhes os bens, os levaram para um centro clandestino de detenção, a Brigada de Lanús, na província de Buenos Aires”, acrescentou. No trâmite interveio um juiz, sua secretária e uma escrivã, que foram ao centro de detenção para realizar o trâmite que permitisse ao pai ceder os bens, em troca, segundo prometeram, da liberdade de seus filhos.

Os Iaccarino pediram à escrivã que anotasse o endereço da Brigada de Lanús, o que foi feito. Graças a isso, está documentado que eles assinaram esse documento diante de uma escrivã sob sequestro. “O dano físico, moral e patrimonial que nos causaram é inestimável”, recordou Alejandro Iaccarino. “Tínhamos sete empresas que funcionavam perfeitamente, os balanços mostram isso. Havíamos conseguido introduzir tecnologia e fortalecer toda a indústria láctea de seis províncias”, destacou.

A perseguição começou sutilmente antes dos sequestros, quando notaram que o estatal Banco Província, sob intervenção da ditadura, começava a cortar-lhes o crédito para forçá-los a vender campos a preço vil. “O gerente do banco, que nos conhecia, nos dizia que estávamos em uma lista negra. Depois soubemos que havia sete pessoas dentro de nossas empresas fazendo trabalho de inteligência para a ditadura”, revelou Alejandro.  Também descobriram que um dos que tentaram comprar deles um terreno agrícola era sobrinho do ministro do Trabalho (1979-1981) e ministro do Interior (1982-1983) durante os governos ditatoriais.

No entanto, o verdadeiro pesadelo começou com os sequestros. “Estive três vezes à beira da morte. Me encapuzaram e me colocaram nu em uma maca, amarraram meus pulsos e os tornozelos e me torturavam com uma agulha elétrica”, contou Alejandro. Uma vez cedidos os bens, os testas de ferro tomaram empréstimos milionários com bancos amigos e não os pagaram. As empresas quebraram, os bancos também, e o Banco Central arrematou os bens, que depois foram adquiridos por outros empresários de boa fé.

Agora só restam dois irmãos Iaccarino, Alejandro e Carlos. Os pais morreram e o irmão mais velho, Rodolfo, faleceu em 2009, um mês depois de receber ameaças de morte por parte de desconhecidos. Segundo a advogada da família, uma vez se tenha a condenação de Bruno Trevisán e Jorge Ferranti, os policiais que os sequestraram e torturaram na Brigada de Lanús, começará a reclamação pela reparação econômica, que será neste mesmo ano. “Os peritos judiciais estimam que o patrimônio tirado dos Iaccarino equivale hoje a cerca de US$ 40 milhões, e vamos exigi-los”, enfatizou. Ela explicou que a intenção de seus clientes é mostrar em juízo “todo o circuito criado a fim de avançar em uma política econômica de depredação”. Envolverde/IPS