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A escravidão do tijolo sobrevive no Paquistão

Cerca de quatro milhões de trabalhadores em fornos de tijolos do Paquistão estão submetidos a condições de trabalho escravo. Foto: Irfan Ahmed/IPS

Lahore, Paquistão, 5/10/2012 – Nem sempre é necessária uma máquina do tempo para viajar ao passado. Basta visitar um típico forno de tijolos na província paquistanesa de Punyab para evocar uma época em que os seres humanos eram comercializados como animais e proliferava a escravidão. Sobrecarregados de empréstimos, várias gerações de trabalhadores, cerca de 4,5 milhões de pessoas espalhadas em 18 mil fornos em todo o país, se descadeiram por uma promessa: liberdade.

Ata Mohammad, de 28 anos, e sua mulher trabalham 18 horas por dia em um forno nos arredores desta cidade paquistanesa, e recebem 450 rupias (US$ 4,8) para cada mil tijolos, independente do tempo que essa tarefa leve. Segundo o Departamento de Trabalho, uma família de cinco integrantes, incluídos os menores, demora um dia inteiro para fabricar mil tijolos.

Um estudo do Centro para o Melhoramento das Condições de Trabalho e do Meio Ambiente concluiu que “uma família de dois adultos e três crianças pode fabricar entre 500 e 1.200 tijolos por dia dependendo de sua habilidade e estado de saúde”. O trabalho requer buscar o barro a dois ou três quilômetros, misturar com água, dar-lhe a forma de tijolo, transportar o produto terminado até o forno e, por fim, cozinhar e corrigir cada um.

Em caso de más condições climáticas ou doença, os trabalhadores nada ganham e se endividam ainda mais, pois suplicam por mais empréstimos aos seus empregadores, encantados em ampliar a linha de crédito que é como uma coleira para muitos deles. Uma vez endividado, o trabalhador não pode ir embora até liquidar a conta pendente.

Os empréstimos, conhecidos como “adiantamento”, são a origem do drama, segundo Ghulam Fatima, secretária-geral da Frente de Libertação do Trabalho Forçado. Os proprietários dos fornos ampliam os empréstimos para ocasiões como casamento, nascimento ou funeral, em uma tentativa de submeter os trabalhadores a uma situação de servidão, acrescentou. “É uma medida totalmente ilegal, como determinou o Supremo Tribunal do Paquistão (em 1988). Segundo a lei, o dono de um forno só pode oferecer um adiantamento igual ou inferior à renda quinzenal”, disse à IPS.

Para cada 400 rúpias que Ata deveria receber, seu empregador desconta 150 (US$ 1,6) para pagar um empréstimo que, segundo ele, seu pai contraiu, mas do qual Ata não recorda nada. É uma situação totalmente injusta, disse Fatima, pois o salário mínimo fixado pelo governo é de 665,7 rúpias (US$ 7) para cada mil tijolos fabricados. Muitos proprietários de fornos pagam apenas 300 rupias, acrescentou.

“Se o governo garantisse o pagamento do salário mínimo aos trabalhadores dos fornos e a recuperação do que devem aos proprietários, os quais pagam menos que o salário mínimo, a maioria dos empregados poderia saldar suas dívidas”, garantiu Fatima. Os trabalhadores deste setor tampouco têm assistência social. Como os empregadores não reservam uma parte de seus salários para emergências, não possuem nenhuma cobertura para tempos de crise. Se contribuíssem para a assistência social, seria o fim do sistema de “adiantamento”, segundo Mehmood Butt, secretário-geral do Sindicato de Bhatta Mazdoor (trabalhadores de fornos) de todo o país.

As famílias dos trabalhadores têm uma etiqueta com um preço equivalente a uma elevada dívida. Ao pagar essa quantia, outros proprietários de fornos podem, de fato, “comprá-los”, contou Butt à IPS. Se um trabalhador foge, é buscado pela polícia e por dirigentes locais, e todo o dinheiro gasto nessas ações se soma à dívida, ressaltou. A falta de documentos de identidade é outro fator que limita a mobilidade destes trabalhadores.

Khalid Mehmood, presidente da Fundação de Educação para o Trabalho, disse que a Carteira de Identidade Nacional Computadorizada é um direito de todos os cidadãos, é um direito, salvo para uns poucos. “Com uma carteira de identidade é possível se registrar na assistência social, se inscrever nas listas de votação, se beneficiar de planos de bem-estar, abrir conta bancária e disputar um emprego. Mas, não para os trabalhadores de fornos”, ressaltou Khalid.

Ele disse à IPS que a Autoridade Nacional de Registro de Base de Dados instalou um acampamento móvel perto dos fornos da região de Lahore no começo deste ano para entregar carteira de identidade aos trabalhadores. Porém, capangas dos proprietários de fornos proibiram a maioria dos trabalhadores de se aproximarem desses locais.

Shaukat Nizai, porta-voz do Departamento de Trabalho de Punyab, acredita que o trabalho forçado não será erradicado sem o empoderamento dos trabalhadores mediante educação. Isto lhes permitirá viver e buscar um sustento longe dos fornos onde nasceram e onde muitos acreditam que morrerão, disse à IPS. Sem conhecimento nem capacidades alternativas, os trabalhadores dos fornos e suas famílias estão destinados a viver trabalhando no calor e sem romper as cadeias de sua escravidão.

Nizai também disse que o projeto Eliminação do Trabalho Forçado em fornos, lançado em 2009 no distrito de Kasur, em Lahore, conta com apoio do Ministério do Trabalho para criar 200 escolas para educar oito mil crianças desse setor. “Não foi fácil. Demoramos muito a convencer os donos de fornos que isto também seria benéfico para eles”, disse Nizai. O governo também começou a oferecer empréstimos brandos para eliminar o sistema de adiantamento, detalhou.

As autoridades também negociam com os proprietários dos fornos sobre o registro dos trabalhadores no Departamento de Assistência Social. Além disso, criou uma linha telefônica de assistência e um escritório de queixas que ajuda estes trabalhadores a reclamarem um salário mínimo e outros direitos que lhes cabem por lei. Envolverde/IPS