Verdade histórica do Chile se esconde em mortes de alto perfil

Pablo Neruda gravando seus poemas na Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, em 1966. Foto: Domínio Público
Pablo Neruda gravando seus poemas na Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, em 1966. Foto: Domínio Público

 

Santiago, Chile, 11/11/2013 – A persistência em indagar as causas da morte do cantor Victor Jara, dos ex-presidentes Eduardo Frei Montalva e Salvador Allende, e do poeta Pablo Neruda dá implícita visibilidade a outros milhares de chilenos que sofreram crimes da ditadura (1973-1990), que ainda não foram punidos. “Existe aqui uma busca pela verdade histórica por meio de processos penais”, cujo maior impulso tem sido a impunidade, disse à IPS o diretor da cadeira de direito penal da Universidade Alberto Hurtado, Luis Emilio Rojas.

Embora “se possa fazer efetivas eventuais responsabilidades penais que possam ter existido, indiretamente, a reativação dos processos penais ajuda a estabelecer a ocorrência de fatos que são marcos, que é a história do Chile”, acrescentou Rojas. O advogado de direitos humanos Eduardo Contreras foi o primeiro a apresentar, junto com a Agrupação de Familiares de Executados Políticos (Afep), uma queixa para que fossem estabelecidas as causas da morte do presidente socialista Salvador Allende.

Atualmente, pede que seja esclarecida a morte do poeta Pablo Neruda, ocorrida em 23 de setembro de 1973, apenas 12 dias depois da sangrenta derrubada de seu grande amigo Allende, que se suicidou durante o bombardeio das forças golpistas contra a sede do governo, La Moneda, em 11 de setembro de 1973. Os restos de Neruda foram exumados em abril do túmulo que compartilhava com sua última mulher, a cantora e escritora Matilde Urrutia (1912-1985), em sua residência de Isla Negra, 110 quilômetros a oeste de Santiago.

No dia 8 deste mês, sete meses após a exumação, o Serviço Médico Legal informou que peritos franceses internacionais descartaram a presença de substâncias tóxicas de origem química nos restos de Neruda. Contreras alertou que se trata apenas de uma primeira parte da pesquisa e antecipou que “solicitaremos, hoje, que se envie a investigação para outros laboratórios em busca de elementos tóxicos de natureza biológica, não química, como gás sarin, gás mostarda, bactérias”.

O juiz Mario Carroza, que investiga se houve participação de terceiros na morte do ganhador do Nobel de Literatura de 1971, declarou que “judicialmente ainda não se pode estabelecer” se Neruda foi morto, ou não, há 40 anos. Se os resultados desses especialistas não satisfazem todas as partes, “teremos que buscar alternativas”, acrescentou. Neruda tinha ao morrer 69 anos e há 28 estava filiado ao Partido Comunista do Chile. Na época se preparava para partir para o exílio no México, de onde se propunha a ser a voz da oposição à ditadura.

Seu ânimo foi derrubado nos dias anteriores à sua morte, quando suas três casas foram invadidas por agentes da ditadura. Em sua casa mais apreciada, a de Isla Negra, sofreu a brutalidade militar: a tropa revirou suas coleções de caracol, conchas e borboletas, suas garrafas e suas carrancas de proa, livros, quadros e até seus versos inconclusos. Os militares o forçaram a demitir todo o pessoal e só ficaram Urrutia e seu motorista, Manuel Araya.

Neruda sofria de câncer na próstata, mas Araya garante que ele morreu pela suposta injeção que um falso médico lhe aplicou no estômago na clínica privada Santa Maria, o que teria sido ordenado pela ditadura. Na mesma clínica morreu, nove anos depois, o ex-presidente Eduardo Frei Montalva (1964-1970), contaminado com agentes biológicos, segundo a investigação judicial do crime.

O caso Frei teve impacto na sociedade chilena, que comprovou que a ditadura havia utilizado toxinas contra seus opositores, mas também serviu para que “alguns incrédulos tomassem consciência”, disse à IPS a presidente da Afep, Alicia Lira. No entanto, embora agora se fale abertamente das violações dos direitos humanos, a impunidade persiste, acrescentou. “Há impunidade quando muitos casos foram encerrados pela promotoria militar, que é juiz e parte; quando mais de 178 agentes do Estado que assassinaram e forçaram o desaparecimento de pessoas não passaram um só dia na prisão, porque foram beneficiados com a meia prescrição ou pena perdoada”, lamentou Lira.

O compositor, cantor e ativista Víctor Jara foi morto em 15 de setembro de 1973, após ter sido detido no Estádio Nacional como muitos outros opositores. Seu corpo mostrava sinais de tortura e perfurações de bala. Mas só em 2008 foi aberta uma investigação sobre sua morte e os responsáveis. O principal deles, o tenente do exército Pedro Barrientos, ainda está livre nos Estados Unidos. Para Contreras, diante das contradições, é um dever “moral” investigar.

“Assim como a lei obriga a investigar a morte de um homem que morre de frio por falta de atenção, o que me parece justo, por que não se investiga a morte de um presidente da República. Isso nos parece uma perfeita canalhice”, disse se referindo a Allende. Por muitos anos subsistiram dúvidas sobre a morte de Allende, que se manteve na sede de governo, armado e resistindo ao bombardeio a que foi submetido pelos golpistas. Finalmente se confirmou que se suicidou. No caso de Neruda também houve contradições, por isso “é uma obrigação ética e moral investigar, e, se não se fizer, é canalhice”, ressaltou Contreras.

Durante o regime militar morreram 3.065 pessoas e cerca de 37 mil foram para a prisão por causas políticas. As causas judiciais por violações de direitos humanos ativas no Chile são cerca de 1.300, e se referem a execuções extrajudiciais, desaparecimentos, torturas, sepultamento ilegal ou associação ilícita, cometidas entre 1973 e 1990. Essas causas e outras já resolvidas representam 75% das vítimas de execuções ou desaparecimento forçado reconhecidos pelo Estado, mas somente em uma mínima proporção dos que sobreviveram à prisão política e às torturas. Envolverde/IPS