Porque não se pode esperar para acabar com o casamento infantil na África

Debritu, com 14 anos e sete meses de gravidez, fugiu de seu marido depois de meses de abusos. Agora está sem casa e não tem ideia de qual será seu futuro nem o de seu filho. Várias crenças e normas sociais, culturais, religiosas e tradicionais apoiam a persistência do casamento infantil na África. Foto: Cortesia de Stephanie Sinclair/Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA)
Debritu, com 14 anos e sete meses de gravidez, fugiu de seu marido depois de meses de abusos. Agora está sem casa e não tem ideia de qual será seu futuro nem o de seu filho. Várias crenças e normas sociais, culturais, religiosas e tradicionais apoiam a persistência do casamento infantil na África. Foto: Cortesia de Stephanie Sinclair/Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA)

Johannesburgo, África do Sul, maio/2014 – Clarissa, de 17 anos, já tem dois filhos e vive junto com o seu marido e suas outras duas esposas na zona rural no sul do Chade. Há três anos viu como sua mãe e suas irmãs preparavam comida para um dia de festa. No começo comemorou como todo mundo, sem se dar conta de que se tratava de seu próprio casamento. Quando se deu conta, ficou desesperada.

“Tentei fugir, mas me agarraram. Me vi com um marido três vezes mais velho do que eu. A escola acabou, sem mais nem menos. Dez meses depois eu estava com um bebê nos braços”, contou. Clarissa é uma das milhões de meninas que em todo o mundo, e em especial na África, são entregues em casamento a cada ano. Muitas delas se tornam esposas ainda crianças, como oito anos, frequentemente casadas com homens muito mais velhos.

Uma em cada três meninas de países de renda média e baixa se casam antes dos 18 anos. E uma em cada nove o faz antes dos 15. Estima-se que, se não for revertida essa tendência, cerca de 15,1 milhões de adolescentes se casarão a cada ano. Dos 41 países com prevalência de casamento infantil de 30% ou mais estão na África. A prática está mais acentuada na África ocidental, onde duas em cada cinco mulheres se casam antes dos 18 anos, e uma em cada seis antes dos 15.

Sabe-se que muitas crenças e normas sociais, culturais, religiosas e tradicionais apoiam a persistência do matrimônio infantil na África. Além disso, a dimensão econômica é uma força que impulsiona a prática. Para muitas famílias pobres, o casamento infantil é uma fonte de renda e, portanto, uma estratégia de sobrevivência.

Independente dos fatores favoráveis e das justificativas mencionadas, o casamento infantil tem um severo e danoso impacto sobre as meninas e a sociedade em geral. Compromete sua saúde, educação e as oportunidades para desenvolverem seu potencial. Muitas “meninas-esposas” ficam expostas a gravidezes e partos antes de estarem preparadas física e psicologicamente.

No Sudão, Awatif, agora com 24 anos, foi entregue em casamento aos 14, quando ainda estava na escola. Contra sua vontade, deixou de estudar na quinta série e em seguida engravidou. “Estive vários dias em casa com um trabalho de parto obstruído, foi doloroso e pensei que morreria. Minha família me levou ao hospital para ser atendida. Sobrevivi, mas meu filho não, e tive uma fístula obstétrica”, contou. Em razão disso, seu marido a abandonou e pediu divórcio.

O diretor-executivo do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), Babatunde Osotimehin, declarou que “nenhum sociedade pode permitir-se oportunidades perdidas, talento desperdiçado nem pessoas exploradas por causa do casamento infantil”.

Alphonsine Zara, de 35 anos, foi entregue em matrimônio aos 16 e sofre as severas consequências de ter se casado tão jovem. Foto: Cortesia do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA)
Alphonsine Zara, de 35 anos, foi entregue em matrimônio aos 16 e sofre as severas consequências de ter se casado tão jovem. Foto: Cortesia do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA)

 

O casamento infantil pode ser um desafio

O casamento infantil é um problema de saúde pública e de direitos humanos, que não pode deixar de ser atendido. Em primeiro lugar, viola instrumentos de direitos humanos, como a Convenção sobre os Direitos da Criança e a Carta Africana sobre os Direitos e o Bem-Estar da Criança. Portanto, é uma obrigação das autoridades do continente proteger os direitos das meninas, os quais os governos se comprometeram defender. Isso inclui acabar com o casamento infantil.

Para acabar com essa prática é preciso tomar medidas em todos os níveis para mudar normas sociais danosas e empoderar as meninas. Em especial, os governos, a sociedade civil, os líderes comunitários e as famílias que levam a sério pôr fim ao matrimônio infantil devem considerar promulgar, aplicar e reunir apoio comunitário para aprovar leis que determinem uma idade mínima para se casar.

Terminar com o casamento infantil não só ajudará a proteger os direitos das meninas, mas também contribuirá em grande parte para reduzir a prevalência de adolescentes grávidas. Nosso objetivo deve ser tolerância zero. Aprovar leis que proíbam o casamento infantil é um bom primeiro passo, e o impacto será mínimo forem cumpridas e se conte com apoio da comunidade.

Existem grandes esforços com resultados promissores em todo o continente que desafiam o status quo dessa prática. Vimos iniciativas boas como escolas de maridos, em Níger, e as iniciativas para adolescentes, em muitos outros países africanos. Em Moçambique, a iniciativa Fórum de Meninas oferece uma plataforma para melhorar suas possibilidades de tomada de decisões, para aumentar sua sensação de empoderamento e para construir uma opinião sobre questões como casamento e saúde sexual e reprodutiva.

A educação não é a única chave para desenvolver o potencial das meninas, mas contribui para adiar o casamento em todo o continente. Vários estudos indicam que as que têm baixo nível educacional possuem maior probabilidade de se casar cedo, enquanto as que estão no ensino secundário têm seis vezes menos possibilidades de casar cedo. A educação obrigatória para todos, especialmente para as meninas, é uma intervenção fundamental que as autoridades podem colocar em prática.

A União Africana e a campanha para terminar com o casamento infantil

O continente tem sido testemunha de um renovado compromisso político para atender esse problema, junto com a presidente da Comissão da União Africana (UA), Nkosazana Dlamini-Zuma. “Devemos eliminar o casamento infantil. As meninas casadas precocemente sofrem a pressão de ter filhos quando ainda são crianças”, destacou. Esse compromisso se leva à prática por meio de uma nova campanha para acabar com o matrimônio infantil.

Os objetivos da campanha são:

– terminar com o casamento infantil mediante ações e políticas que protejam e promovam os direitos humanos;

– gerar consciência sobre o casamento infantil;

– eliminar barreiras e obstáculos para o cumprimento da lei;

– determinar o impacto socioeconômico do casamento infantil;

– aumentar a capacidade dos atores não estatais para levar adiante um diálogo político baseado na evidência e nas atividades operacionais.

O UNFPA acredita que a campanha da UA para acabar com o casamento infantil representa um ponto de inflexão nessa luta. É hora de não mais tolerarmos que as meninas se convertam em esposas. Chegou a hora de nos comprometermos em garantir a possibilidade de elas desenvolverem todo seu potencial.

O continente africano tolerou o casamento infantil por muito tempo com vários argumentos e justificativas mal explicadas. Mas nossas meninas, que levam a carga dessa prática prejudicial, não podem esperar mais por sua proibição. Não se deve permitir que continue o casamento infantil. Nem um dia mais. Envolverde/IPS

* Julita Onabanjo é diretora regional do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) para a África oriental e austral. Benoit Kalasa é diretor regional do UNFPA para África ocidental e central. Mohamed Abdel-Ahad é diretor regional do UNFPA para o norte da África e os países árabes.