O exército sul-sudanês deve ser responsabilizado por abusos

Os ataques de soldados contra civis fazem com que os murles se sintam cada vez mais perseguidos por seu próprio governo. Foto: Jared Ferrie/IPS
Os ataques de soldados contra civis fazem com que os murles se sintam cada vez mais perseguidos por seu próprio governo. Foto: Jared Ferrie/IPS

 

Jonglei, Sudão do Sul, setembro/2013 – No dia 31 de julho, soldados sul-sudaneses mataram a tiros duas mulheres desarmadas, Anyibi Baba e Ateil Rio. Seus assassinatos foram os últimos de uma série de graves violações contra os direitos da população civil por parte do Exército de Libertação Popular do Sudão, que combatia um grupo rebelde murle no Estado de Jonglei.

Pelo menos 70 civis murles e cerca de 20 membros dessa comunidade que integravam o exército e outras forças foram assassinatos desde dezembro.

O pânico se espalhou entre os murles. Milhares abandonaram suas casas, com medo de que os soldados retornassem.

Tragicamente, a violência não é nenhuma novidade em Jonglei. O conflito étnico, avivado pelo furto de gado, custou as vidas de milhares e fez dezenas de milhares de refugiados.

Nos últimos três anos, os ataques e contra-ataques entre membros armados dos grupos étnicos dinka bor, lou nuer e murle foram especialmente sangrentos, e, cada vez mais, têm por alvo mulheres e crianças. Como as autoridades quase nunca investigam ou punem os criminosos, esses grupos impõem sua própria justiça em um ciclo cruel de brutais ataques em vingança.

Skye Wheeler. Foto: Cortesia da Human Rights Watch.
Skye Wheeler. Foto: Cortesia da Human Rights Watch.

O ressurgimento de um grupo rebelde murle, em 2012, e a contrainsurgência do governo complicaram muito a situação e as possibilidades de paz em Jonglei, afundando todo o condado de Pibor, centro do esforço anti-insurgente, em uma crise humanitária com dezenas de milhares de refugiados murles.

Em particular, os ataques contra civis por parte de soldados fizeram os murles se sentirem cada vez mais perseguidos por seu próprio governo. “Não somos nós que realizamos blitze, não somos nós que nos rebelamos contra o governo, mas somos os assassinados”, me disse uma mulher. Os ataques de soldados contra civis frequentemente parecem ser represálias.

Em um caso ocorrido em maio, soldados, que voltavam de um tiroteio com os rebeldes nas florestas, mataram 12 homens, três deles chefes, na aldeia de Manyabol. Em consequência, toda a aldeia fugiu. Os soldados também incendiaram e saquearam casas, agências de ajuda e hospitais, e destruíram e ocuparam escolas. “Eles não querem nada de bom para o povo murle”, protestou um homem.

O presidente Salva Kiir condenou os abusos, dizendo que “algo vai mal” quando os civis têm medo de seus próprios soldados. O exército adotou algumas medidas para reduzir os abusos. Em meados de agosto, levou à justiça militar dois soldados pela morte de Baba e Rio.

Nesse caso, agiu rapidamente, em contraste com uma série de outros abusos cometidos desde o final do ano passado. No dia 20 de agosto, o exército também anunciou a prisão do brigadeiro James Otong, pelos sérios abusos cometidos por soldados em sua cadeia de comando, entre abril e julho.

Esses primeiros passos deveriam ajudar as forças armadas do Sudão do Sul a enviar uma clara mensagem de que as matanças e os saques não serão perdoados. E o exército deve fazer sua parte, fazendo com que outros soldados responsáveis por abusos sejam responsabilizados por seus atos e enviando funcionários da justiça militar e civil para a área.

O exército também tem que dar passos imediatos para melhorar sua relação com a população civil, amplamente murle. Esses passos podem incluir, por exemplo, trasladar os barracões distantes dos centros urbanos.

A imparcialidade na abordagem da violência étnica em Jonglei será crucial para enfrentar a sensação de perseguição que reina entre os murdes. As autoridades não protegem dos ataques nenhum dos lados do conflito étnico, mas acabam incentivando jovens lou nuer a se armarem, sem nada fazer para deter a mobilização de milhares de pessoas dessa comunidade, que em julho atacaram áreas murles.

Enquanto ocorria o ataque, o exército disse que não poderia proteger os civis murles, que em sua maioria fugiu para as florestas devido ao conflito e aos abusos militares. Vários informes perturbadores mas confiáveis alegaram, inclusive, que o exército forneceu munições aos combatentes da etnia lou nuer.

É preciso uma estratégia de longo prazo para que a polícia, os tribunais e outras partes do sistema judicial possam proporcionar uma reparação a todas as vítimas e acabar com o roubo de gado em Jonglei.

Por agora, os líderes do Sudão do Sul deveriam intensificar e manter seus esforços para abordar os abusos das forças do governo ali e proteger todos os civis vulneráveis. O exército precisa demonstrar a todos os sul-sudaneses que está ali para protegê-los, não para prejudicá-los. Envolverde/IPS

* Skye Wheeler é pesquisadora sobre temas do Sudão do Sul na organização Human Rights Watch. No dia 13 de setembro divulgou um informe intitulado They are Killing Us: Abuses Against Civilians in South Sudan’s Pibor County (Eles estão nos matando: Abusos contra civis no condado sul-sudanês de Pibor), que documenta execuções ilegais de membros da etnia murle, entre dezembro de 2012 e julho de 2013.