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Ex-iugoslavos e a verdade sobre o gulag de Tito

Vista da abandonada prisão de Goli Otok. Foto: Pokrajac CC BY-SA 3.0
Vista da abandonada prisão de Goli Otok. Foto: Pokrajac CC BY-SA 3.0

 

Belgrado, Sérvia, 6/2/2014 – Um dos segredos melhor guardados da desaparecida Iugoslávia ficou exposto com a divulgação na internet dos nomes de 16.101 detentos de Goli Otok, ou Ilha Nua, único gulag ao estilo soviético criado pelo regime de Tito, há 65 anos. A lista dos que foram levados para esse campo de trabalhos forçados, disponível em um site croata, causou reações sem precedentes entre os poucos sobreviventes e suas famílias em toda a antiga federação, que se dissolveu em 1991.

Essas reações revelam até que ponto as penúrias de muitos bósnios, croatas, montenegrinos, macedônios, eslovenos e sérvios que foram prisioneiros em Goli Otok constituíram uma carga e uma fonte de vergonha familiar durante gerações. Agora as famílias esperam assumir o traumático passado de seus parentes. “Sempre quis saber o que estava mal na vida do meu avô materno”, disse à IPS Smiljana Stojkovic, professora de 45 anos de Belgrado.

Seu avô Stanko costumava contar histórias sobre sua vida como aprendiz de sapateiro antes da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e das batalhas contra os alemães durante o conflito, enquanto ele era comunista. Mas a história “parava aí e ficava um vazio até a chegada de outros, seus netos, nos anos 1960. Nos diziam para nunca perguntarmos o que havia acontecido nesse período”, afirmou.

Agora Stojkovic sabe que seu avô, morto em 2000, esteve detido em Goli Otok durante sete anos. “Deve ter dito que preferia Stalin em lugar de Tito (o líder iugoslavo Josip Broz), sendo um comunista leal que acreditava na União Soviética. Agora entendo seu silêncio”, afirmou.

Goli Otok era uma pequena ilha desabitada, quase deserta, seis quilômetros ao norte da costa croata no Mar Adriático. Em julho de 1949 se converteu em prisão de opositores ao governo da Iugoslávia, que havia decidido deixar a órbita soviética em junho de 1948. Essa medida se conhece como “o ‘não’ histórico” a Stalin (1879-1953), que na época cobrou dos comunistas iugoslavos que derrubassem o regime de Tito (1892-1980).

Nas palavras de Stalin, Tito se convertera em “um servo do imperialismo”, se referindo aos países capitalistas do Ocidente. Os comunistas soviéticos e iugoslavos foram aliados na luta contra os alemães na Segunda Guerra. Contudo, “para muitos comunistas, era inconcebível que Stalin se enganasse”, observou Zoran Asanin, presidente da Associação Goli Otok, de Belgrado.

Segundo seu testemunho, e testemunhos e lembranças de muitos sobreviventes, durante 1948 nas reuniões do partido simplesmente se perguntava aos filiados se preferiam Stalin em lugar de Tito. Se a resposta fosse sim, a pessoa era imediatamente enviada para Goli Otok, sem nenhum processo judicial. E não se informava nem os familiares mais próximos sobre seu paradeiro.

Os prisioneiros eram enviados para a ilha a partir do porto de Bakar. Em Goli Otok, de 4,7 quilômetros quadrados, havia quatro acampamentos sem saneamento nem instalações dignas. A ilha é conhecida por seu clima implacável, com verões abrasadores e invernos gélidos.

Os presos trabalhavam em um canteiro, e os guardas batiam neles por serem “traidores” da causa iugoslava. Também faziam com que se batessem entre eles. A fome e a sede eram uma realidade cotidiana. A cada prisioneiro eram dados apenas 200 decilitros de água por dia e um pedaço de pão.

A lista de nomes indica 413 mortos nesses campos, por doenças como a febre tifoide, problemas cardíacos ou suicídio, entre 1949 e 1956, quando os últimos presos políticos foram levados de volta à costa e enviados para prisões comuns em toda a Iugoslávia. Durante anos permaneceram privados de direitos políticos, não podiam encontrar emprego e muitos foram rejeitados por vizinhos, amigos e pela própria família, expostas ao assédio da polícia secreta.

Aos filhos se dizia que os pais haviam saído em “uma viagem de trabalho” que durava anos, contam muitos dos descendentes em seus comentários sob a lista de nomes disponível na internet. Às mulheres dos presos de Goli Otok era concedido o divórcio imediatamente. Mas, às vezes isso não era suficiente.

“Tive que renunciar publicamente ao meu marido em uma reunião do Partido Comunista para continuar minha carreira como professora universitária”, contou à IPS Rada B., de 88 anos. “Tive que prometer que ele nunca mais poderia ver minha filha, e cumpri. Ela nunca me perdoou”, acrescentou.

A verdade sobre Goli Otok começou a emergir nos anos 1990, quando as repúblicas da Iugoslávia se separaram e muitos segredos dos desaparecidos regimes comunistas vieram à luz. Porém, as sangrentas guerras de secessão dessa década impediram que famílias, vítimas e sobreviventes fechassem esse capítulo de suas vidas. Apenas nos últimos anos, Croácia, Sérvia e Eslovênia começaram a compensar as vítimas de Goli Otok, muitas delas inocentes de todo crime ou nem mesmo eram comunistas.

Segundo Asanin, na Sérvia há cerca de 300 sobreviventes, que reclamam uma reabilitação política e uma compensação do Ministério da Justiça. O Estado sérvio concordou em indenizar com 700 dinares (US$ 8,5) cada dia passado em Goli Otok. Até agora este país pagou mais de US$ 640 mil a sobreviventes ou aos seus herdeiros imediatos.

As reações e os comentários, majoritariamente anônimos, abaixo da lisa de nomes de presos do gulag, são emotivos e às vezes mais reveladoras do que as histórias dos prisioneiros. “Encontrei meu tio, sei que esteve ali porque fazia piadas sobre política”, disse uma mulher chamada Beba. “Meu avô foi parar lá só porque disse que as lojas diplomáticas (criadas após a Segunda Guerra para a elite comunista governante) deveriam ser abertas ao público”, escreveu um homem identificado como Bane.

Pessoas de toda a antiga Iugoslávia trocam e-mails para conhecer detalhes das circunstâncias de vida ou morte de seus familiares em Goli Otok. Muitos mencionam anos de silêncio de seus parentes e citam relatos familiares de homens inocentes que desapareciam da noite para o dia e acabavam na ilha.

“Qualquer um podia acabar em Goli Otok simplesmente por ter mais que outros, por brincadeiras ou porque alguém desejava sua esposa”, disse Rada B. “Mas aqueles eram tempos extraordinários, que pediam medidas extraordinárias, e nós tivemos que acreditar em nossos líderes. De outro modo, onde teríamos terminado?”, perguntou.

A ilha de Goli Otok está deserta desde que deixou de ser gulag, e somente turistas curiosos a visitam de vez em quando para ver os vestígios dos campos de concentração. Envolverde/IPS