Opinião

Em busca da classe operária perdida

Por Mario Osava, da IPS – 

Rio de Janeiro, Brasil, 16/2/2017 – O que aconteceria se a Área de Livre Comércio das Américas (Alca) tivesse sido implantada como os Estados Unidos tentaram nas malogradas negociações que se prolongaram de 1994 a 2005? O campeão dos acordos para eliminar as fronteiras comerciais adota agora, com o republicano Donald Trump na Presidência desde 20 de janeiro, posições protecionistas que Washington condenava nos países latino-americanos que resistiam em abrir seus mercados, chamando-as de travas ao progresso.


Veículos brasileiros sendo embarcados para exportação. A perda de valor e de empregos na outrora poderosa indústria metalúrgica e mecânica foi uma das causas do descontentamento de importantes setores de trabalhadores com a política e, em particular, com a esquerda. Foto: APPA

Com a Alca, pelo menos o México não estaria agora na solidão com que tem de enfrentar as ameaças imediatas do chamado “populismo de direita” que, instalado no centro do poder mundial, agrava de forma apocalíptica as incertezas da humanidade. “Voltamos aos anos 1930”, compara Fernando Cardim de Carvalho, economista brasileiro e atualmente pesquisador do Instituto de Economia do Bard College, no Estado de Nova York, nos Estados Unidos.

Recuperar empregos perdidos foi uma bandeira eficaz na campanha de Trump. Ajudou-o a vencer em Estados como Michigan, Ohio, Pensilvânia e Wisconsin, antes de maioria democrata, para compor o chamado “cinturão industrial”, com sua massa operária no nordeste e meio oeste do país. Envolvê-los foi decisivo e possível para o magnata Trump porque a desindustrialização nas últimas quatro décadas converteu a região no “cinturão da fome”, com desemprego, violência e fuga da população, em uma decadência que agora cobrou seu preço político ao Partido Democrata.

Detroit, capital da indústria automobilística, tinha 1,85 milhão de habitantes em 1950. Em 2010, segundo o censo, eram 714 mil. Suas ruinas urbanas incomodam. O processo vem de longe, desde a primeira crise do petróleo e da recessão econômica da década de 1970, acompanhadas da expansão japonesa nas indústrias automobilística e eletrônica. As empresas migraram em busca de menos custos dentro dos Estados Unidos e os avanços tecnológicos reduziram a mão de obra industrial.

Esse processo tirou muito mais empregos do que os tratados de livre comércio, afirmam pesquisadores. Trump atribuiu aos acordos comerciais o êxodo de empresas nacionais, justificando o protecionismo e os ataques a México e China. O Brasil duvidou da Alca até se tornar mais nacionalista a partir de 2003, sob o governo do Partido dos Trabalhadores (PT), que implementou várias iniciativas para proteger as indústrias nacionais e estimular a criação de novas. Parecido com o que Trump anuncia.

“Mas é diferente. O Brasil representa menos de 1% do comércio mundial, atua em nichos e pode apoiar suas indústrias com estímulos e câmbio mais competitivo, sem impactos relevantes no exterior. Os Estados Unidos não, pois o país é o centro do mundo, não pode fechar sua economia sem gerar confusão, conflitos”, observou Cardim. O México concentra 80% de suas exportações no mercado norte-americano, apontou o professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

O descontentamento é generalizado no Brasil. São Paulo, cidade que liderou os protestos contra a ex-presidente Dilma Rousseff, continua sendo palco de manifestações contra o atual presidente, Michel Temer. Foto: Paulo Pinto/AGPT

 

Cardim alertou que são imagináveis os danos de medidas unilaterais do sócio de proporções esmagadoras cujo novo governo ameaça “não aceitar as regras do jogo”. No Brasil, tentativas de recuperar o setor não evitaram a crescente desindustrialização, qualificada de “precoce” por afetar um país ainda de renda média por pessoa, de US$ 15 mil, segundo a paridade do poder de compra, equivalente a apenas 26% do norte-americano, segundo o Fundo Monetário Internacional.

A indústria de transformação atingiu seu teto de 21,6% do produto interno bruto (PIB) em 1985, uma participação que caiu para 11,4% em 2015, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Sua produção despencou 9,8% em 2015. O Estado de São Paulo, o mais industrializado, chamado de “locomotiva” do país, sofreu as maiores perdas. Sua participação na produção industrial era metade do total no começo dos anos 1990, mas caiu para 38,6% em 2013.

Essa decadência não é tão visível como as ruínas do “cinturão de ferrugem” norte-americano e do norte da Grã-Bretanha que aprovou o Brexit, mas se manifesta em protestos de rua desde 2013 e em um airado rechaço ao PT, surgido das lutas sindicais paulistas em 1980. Seu fundador e principal líder, Luiz Inácio Lula da Silva, operário metalúrgico e sindicalista que conseguiu ser presidente entre 2003 e 2010, mantém alta popularidade, apesar de vários processos de corrupção que ameaçam seu futuro.

Mas sua sucessora, Dilma Rousseff, foi reeleita em 2014 com um fraco apoio em São Paulo, onde conseguiu apenas 35,69% dos votos válidos. Sua destituição, em agosto de 2016 pelo Congresso, foi precedida e impulsionada por maciças manifestações paulistas. Escândalos de corrupção, que afetam políticos de quase todos os partidos, foram decisivos na queda de Dilma. Não há acusações contra ela, mas foi durante os governos do PT que ocorreu a grande rapina nos negócios da Petrobras. Sua vulnerabilidade era econômica, por ter provocado uma grave crise fiscal.

Entretanto, a perda do vigor industrial e dos bons empregos do setor contribuíram para a determinação com que os paulistas se mobilizaram pelo impeachment de Dilma e a derrota do PT. Muitos dos erros da primeira mulher a ocupar a Presidência do Brasil se deveram a tentativas voluntaristas, “populistas”, segundo seus críticos, de recuperar a indústria. Incentivos fiscais, redução forçada das taxas de juros e dos custos de energia foram algumas dessas medidas de resultados negativos.

Os governos do PT intensificaram a proteção à indústria nacional, com tarifas no máximo permitido pelas regras, e exigências de conteúdo nacional em determinados produtos. “Mas o nacionalismo econômico é condição de sobrevivência, diante da competição entre nações”, justificou Luiz Bresser Pereira, professor emérito da Fundação Getulio Vargas que alerta para a desindustrialização brasileira acentuada pela “enfermidade holandesa” (câmbio supervalorizado) desde 2005.

“Nos Estados Unidos, o nacionalismo se faz agressão imperial, perigoso porque não é só econômico como o brasileiro, pois incorpora outras dimensões, ao se tratar de potência militar”, se estendendo a temas migratórios, religiosos e étnicos, pontuou Bresser Pereira. Para ele, o Brexit (saída britânica da União Europeia), a vitória de Trump e a ascensão da ultradireita na Europa desnudam “uma crise política do capitalismo, causada pela renúncia ao nacionalismo das elites econômicas dos países ricos que agora vivem de rendas”, com ganhos também fora do mercado interno.

A debilidade da social-democracia desde 1989, com governantes que às vezes “não souberam distinguir suas políticas das neoliberais”, também atrapalha a superação da crise, que compreende uma maioria de “perdedores da globalização” cuja reação não se pode menosprezar como “mero populismo”, advertiu o professor.

A perda de peso do emprego industrial – por mudanças tecnológicas, produtivas e sociais, além da migração de empresas – tira votos da esquerda “não populista”, com seus partidos orgânicos, como o PT. E também dilui sua matriz política e ideológica, ao enfraquecer o sindicalismo e a geração de quadros e líderes. A decadência de polos industriais favorece opções radicais e nacionalistas que, aparentemente, tendem a aderir aos movimentos conservadores e de extrema direita. Envolverde/IPS