Arquivo

Arranca o espinhoso processo de paz da Síria

Os civis sírios, como estes de Maa’rrat An-Numan, na província de Idlib, suportam todo tipo de penúria pela guerra começada há quase três anos. Foto: Shelly Kittleson/IPS
Os civis sírios, como estes de Maa’rrat An-Numan, na província de Idlib, suportam todo tipo de penúria pela guerra começada há quase três anos. Foto: Shelly Kittleson/IPS

 

Genebra, Suíça, 20/1/2014 – A sorte do complexo conflito armado da Síria, no qual confluem fatores religiosos e étnicos, junto a pressões dos países vizinhos e interesses estratégicos de grandes potências, começará a ser definida a partir desta semana, na conferência denominada Genebra II. No dia 24, se saberá se as partes que se enfrentam na guerra da Síria aceitam uma saída negociada para o conflito de quase três anos, que já causou mais de cem mil mortes e 2,3 milhões de refugiados, enquanto outros 9,3 milhões de habitantes sobrevivem em estado de extrema falta de proteção humanitária.

Nesse dia deverão se reunir na cidade suíça os representantes do governo do presidente Bashar al Assad e as delegações das forças rebeldes que o combatem desde março de 2011. Até agora, nenhuma das duas partes deu sinais claros de sua disposição de participar das conversações, em uma dilação destinada, aparentemente, a obter a melhor posição na mesa de negociação. As perspectivas da negociação parecem ter sofrido alterações nas últimas semanas, nas quais houve combates entre essas forças opositoras e o governo.

Uma fonte, íntima conhecedora da situação interna na Síria, disse à IPS que alguns grupos de oposição pretendem obter a concessão de liberdade para combater outras forças, que também enfrentam Assad. Neste momento, parece que os rebeldes “mais moderados  estão se impondo nas operações militares contra os grupos mais radicais da Al Qaeda”, que se negam a qualquer possibilidade de um cessar-fogo, afirmou a fonte.

De todo modo, a conferência de Genebra II, promovida pela Organização das Nações Unidas (ONU), começará de maneira formal no dia 22, na cidade de Montreux, na região do lago Leman, o mesmo que banha Genebra no extremo oposto. Da sessão de Montreux participarão os governos de 30 países e delegados de organizações internacionais, além da ONU, com o secretário-geral, Ban Ki-moon, à frente. São esperados discursos com exortações à paz e em sua maioria críticos do regime de Assad.

Estados Unidos e Rússia intensificaram nas últimas semanas suas iniciativas para encaminhar a negociação com dois objetivos primordiais para a primeira etapa: alcançar o cessar-fogo e habilitar corredores para envio de assistência às populações mais necessitadas. David Harland, diretor-executivo do Centro para o Diálogo Humanitário (HD), organização privada com sede em Genebra, estima que a melhor solução para enfrentar as dificuldades humanitárias é distribuir a ajuda com a cooperação do governo e de todas as partes. “Isso não ocorre atualmente, quando numerosos comboios transportando ajuda são bloqueados”, lamentou.

A maioria foi detida por não contar com autorização do governo de Damasco, porque foram interceptadas pelos combatentes, por grupos criminosos ou por extremistas, acrescentou Harland. “Atualmente é muito difícil trabalhar em questões humanitárias dentro das zonas controladas pela oposição”, explicou.

Na antessala da conferência, considera-se que o cessar-fogo é muito possível em áreas onde a oposição está cercada, como na região de Hula e na cidade de Homs, na província de mesmo nome, oeste do país. também é factível em pontos onde o governo retém posições dentro de território controlado pela oposição, como ocorre em lugares como Dar’a e Dayr Az Zawr, a nordeste, e Idlib, ao norte.

O Centro HD é uma organização de baixo perfil público que presta com êxito serviços de mediação e se especializa em conflitos armados. No caso da Síria, Harland, ex-diplomata neozelandês, manteve reuniões com Assad e com dirigentes da oposição armada. Com esses antecedentes, afirmou que “Genebra II não porá fim à guerra”, enfatizando que “não pode”.

O processo de Genebra dá como certo que Estados Unidos e Rússia têm suficientes credenciais no caso sírio para levar as coisas adiante. Mas esse entendimento não ficou evidente durante um período em que morreram mais de cem mil pessoas em razão do conflito, ressaltou Harland. O problema está no processo de Genebra, que não encontra uma forma de dar voz aos sírios que desenvolvem sua atividade na oposição interna. Isso “precisa mudar caso se deseje que o processo de paz seja posto em andamento”, alertou.

Genebra II terá êxito “se abrir as portas para um novo tipo de processo de paz”, afirmou Harland. Um processo pacificador de sucesso teria que ser alimentado pelo próprio povo sírio, embora aplicado com ajuda externa. Seria como uma dança: consultas com os sírios no terreno e depois decisões no Conselho de Segurança da ONU, baseadas naquelas conclusões, ressaltou.

Quanto ao convite ao Irã para assistir a reunião de Montreux, que Moscou incentiva enquanto Washington é contra, Harland disse que essa participação “pode ser muito proveitosa. Creio que precisamos de um mecanismo em que todos os protagonistas que dão forma à realidade da Síria estejam presentes nas discussões e assumam suas responsabilidades”.

Para Harland, o conflito da Síria mantém semelhanças com a Guerra da Bósnia, entre 1992 e 1995, que derivou do desmembramento da antiga Iugoslávia. Com na Bósnia, aparecem na Síria assuntos políticos internos junto a questões étnicas e religiosas, igualmente locais, afirmou. Depois aparece um segundo círculo, com protagonistas regionais que apoiam determinadas comunidades étnicas e religiosas. Por fim, um terceiro círculo de potências mundiais, principalmente Estados Unidos e Rússia, mas sem excluir a China.

Diante deste quadro, afirmou Harland, a maior dificuldade que enfrenta o diplomata argelino Lakhdar Brahimi, que coordena as negociações na qualidade de representante especial da ONU e da Liga Árabe para a Síria, “é alinhar os três círculos para conseguir uma perspectiva séria de paz”. Isto é, deve haver alguns acordos entre as partes sírias, outros entre os protagonistas regionais e, também, outros entre Estados Unidos, Rússia e os demais membros permanentes do Conselho de Segurança.

Harland concorda que no caso da Bósnia a pacificação chegou depois de arrasadores bombardeios sobre alvos sérvios por parte das esquadrilhas da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). “No caso da Síria, creio que é muito improvável uma intervenção estrangeira decisiva”, afirmou.

Além disso, os casos bósnio e sírio apresentam diferenças de escala. A Bósnia, com apenas quatro milhões de habitantes, é um país próximo à Europa e ao Ocidente, na geografia e nos interesses. A Síria, que tem seis vezes mais habitantes, está distante, afirmou o diretor do Centro HD. Uma última diferença é que o poder relativo dos Estados Unidos atualmente é “menor do que o que tinha em 1995, quando interveio militarmente na Bósnia”, concluiu Harland. Envolverde/IPS