Bichos antiecológicos

Insólita notícia. Manadas de javalis andam destruindo plantações em várias localidades agrícolas do país. Os bravos invasores europeus atacam pessoas e ameaçam a saúde ambiental. Ninguém sabe como enfrentá-los.

Trazidos há décadas para a Patagônia argentina, onde foram introduzidos para servirem à caça esportiva, os javalis passaram também a ser criados em cativeiro no Uruguai e, depois, no Brasil, visto apresentarem saborosa carne. Mas fugiram, ou foram soltos, dos criatórios, reproduzindo-se por aí com velocidade alarmante. Dizem que sua população dobra a cada seis meses. Apavorante.

Há uma agravante. O javali verdadeiro se cruza fácil com o porco do mato brasileiro – cateto ou queixada –, resultando num animal híbrido, apelidado de javaporco. Em cativeiro, o javaporco se oriunda do cruzamento com raças domésticas, gerando um animal amansado de boa carne. Algumas churrascarias a servem no rodízio.

Os suídeos selvagens, puros ou hibridados, assustam a turma do interior em 13 Estados brasileiros, onde já foram observados comendo roça de mandioca e milho, atacando galinheiros e devorando hortas. Chegando a pesar 150 quilos, inexiste cerca que os contenha. Sem predadores naturais, viraram uma violenta espécie invasora.

O problema envolve a agricultura, o meio ambiente e a saúde pública. Hospedeiro de doenças como a aftosa e a peste suína clássica, pode pôr em risco a suinocultura nacional. Predador voraz, afeta a biodiversidade local. Por isto, preocupa os ambientalistas, como na Área de Proteção Ambiental (APA) de Macaé de Cima (Nova Friburgo, RJ).

O bicho invasor é um animal nocivo e, como praga, precisa ser controlado. Mas aí surge o problema. Abater um javali, ou um javaporco, pode configurar crime ambiental. O inusitado assunto carece de regulamentação do Ibama, junto com os órgãos estaduais. Mas os órgãos públicos batem cabeça entre si.

No Rio Grande do Sul e em Santa Catarina o abate e a captura dos javalis e porcos asselvajados estiveram liberados por um tempo. Agora foram suspensos para “mais estudos”. Enquanto isto, o problema se agrava. Rafael Salerno, agrônomo e estudioso da matéria, teme que as manadas de javalis cheguem à Amazônia. Seria um desastre. Duas pessoas, uma em Ibiá (MG), outra em Pedregulho (SP), foram mortas por mordida dos dentuços.

Sejam animais ou vegetais, a invasão de ambientes naturais por espécies exóticas já é considerada a segunda causa de perda de biodiversidade no mundo. Segundo o WWF, entidade ambientalista que mais se destaca no tema, as espécies invasoras configuram um verdadeiro desastre ambiental.

O problema vem de longe. Na colonização da Austrália, há 200 anos, os ingleses introduziram coelhos e raposas tentando reproduzir na nova terra seus ambientes familiares de origem. Tais espécies, porém, acabaram se tornando terríveis pragas, competindo por alimentos com os mamíferos nativos.

Há décadas os fazendeiros australianos, com o apoio do governo, lutam contra a epidemia de coelhos e raposas. Estímulo à caça, práticas de envenenamento, armadilhas, destruição de tocas com dinamite e, mais recentemente, introdução de doenças letais, como a mixomatose nos coelhos, nada tem funcionado a contento.

No Brasil se conhece o exemplo nocivo da introdução, na década de 1950, do lagarto teiú em Fernando de Noronha. O suposto combatente de ratos encontrou nos ovos das tartarugas e de pássaros marinhos das ilhas uma fonte maravilhosa de proteína, reproduzindo-se de forma incontrolável. Ande nas belas praias do arquipélago e os verá tomando sol.

Lebres europeias, bem maiores do que as nativas, atacam as lavouras paulistas e paranaenses há mais tempo que os javalis. Advindo das planícies paraguaias e argentinas, onde foi introduzido, o bicho orelhudo ataca os brotos das lavouras que encontra pela frente. Adora os de melancia.

Os agricultores nacionais andam sofrendo na agenda ambiental. Basta ver a polêmica criada sobre o novo Código Florestal. Volta e meia, os carimbam contra a natureza. Agora, escaldados, solicitam ajuda para controlar a ameaça dos animais invasores, como os javalis e os lebrões. Bichos antiecológicos.

Na maioria dos Estados da Federação, como em São Paulo, a caça é constitucionalmente proibida. Certamente os legisladores imaginaram eliminar a matança de espécies silvestres – a paca, o tatu, a codorna. Mas criaram, sem o querer, um obstáculo ao controle da fauna exótica. Sorte do javali.

Os defensores da caça controlada, permitida na maioria dos países, argumentam seu valor na defesa ambiental dos territórios. Pode-se comprovar tal preservação ecológica na França, nos Estados Unidos ou no Quênia. Também funciona no Parque Nahuel Huapi, que circunda a linda Bariloche, no Sul da Argentina. Lá os javalis podem ser abatidos a tiro sob a supervisão dos indígenas locais. A caça restrita gera renda e empregos no turismo de aventura patagônio.

Há décadas, se compreende que a conservação ambiental difere do puro preservacionismo. Neste a natureza é intocável e o valor da biodiversidade tudo supera. Naquela, se permite o uso sustentado dos recursos naturais e a biodiversidade se maneja em favor do homem. Aqui cabe a caça.

Uma saída vernacular deve resolver a parada. Basta os órgãos ambientais, ao regulamentar o controle dos javalis, permitirem o uso de armadilhas e técnicas que descaracterizem tal atividade como uma caçada de animais. Com a palavra o Ibama.

Lembrei-me do Obelix, gordo amigo do Asterix, o Gaulês. Louco por comer javalis assados, inteiros, o personagem da engraçada história em quadrinhos os abatia no muque. Será esse o desiderato dos agricultores, pegar javalis à unha?

* Xico Graziano é ex-secretário estadual do Meio Ambiente de São Paulo, engenheiro agrônomo, mestre em Economia Rural e doutor em Administração.

** Publicado originalmente no site EcoD.