Sociedade

A esperança é a última a ser medicada

Foto: Shuttestock
Foto: Shuttestock

Até quando autoridades optarão pela solução mais higiênica em lugar de ouvir e proteger verdadeiramente as crianças? Até quando a tão lucrativa indústria farmacêutica seguirá preenchendo com comprimidos os vazios que só o contato afetivo, a vontade política e uma sociedade mais justa e igualitária podem de fato preencher?

Por Maria Helena Masquetti*

Como nos sentiríamos se, ao gritar de dor ou vociferar depois de ter levado uma martelada em pleno dedão do pé, as pessoas em volta estranhassem nosso comportamento, nos oferecendo um medicamento para acalmar e conter nossa reação? E se, por acaso, essa martelada se repetisse por muitos dias seguidos e, em função de nosso comportamento cada vez mais colérico, decidissem nos internar numa instituição psiquiátrica? Desespero, confusão, perplexidade seriam certamente alguns dos sentimentos que nos dominariam. Até porque, se cantássemos ou assoviássemos ao levar as marteladas, aí sim nossa saúde mental deveria ser posta em dúvida.

Aos sete anos, Edu (seu nome verdadeiro rima assim) vem levando marteladas tão doloridas ou mais do que as imaginadas acima. Uma delas foi quando presenciou a morte da tia, brutalmente assassinada numa retaliação por traficantes de drogas. Outra quando foi levado para uma instituição de acolhimento sob a justificativa legal de que estaria melhor protegido uma vez que o avô e a mãe, embora amorosos, não davam conta de lhe garantir a segurança e cuidar de seus vários outros irmãos.

Questionamentos à parte sobre tal decisão judicial, o que importa é que as marteladas têm sido duras demais para Edu. Considerando a quantidade de experiências amargas tão cedo vividas por ele, ter rompantes de agressividade, reagir com revolta às frustrações e negar-se a cumprir algumas regras, tudo isso deveria ser computado como bons sinais de saúde mental pela relação direta com as adversidades que ele tem enfrentado.

No entanto, em lugar de ser amparado por escola, familiares ou terapeutas – coisas impensáveis na vida de Edu – ele acabou sendo encaminhado para outra instituição, só que, dessa vez, psiquiátrica. É certo (e óbvio) que não se trata de uma criança dócil – como se tantas outras de condição até mais privilegiada o fossem. Porém, a partir dessa internação, resta imaginar quantos comprimidos diários serão necessários para comprovar que os comportamentos inadequados de Edu se resumem a disfunções psíquicas.

Descartar a validade de expressões genuínas apenas por não serem exemplares – leia-se passivas em uma infinidade de casos –, é tentar apagar a parte mais viva de uma criança. Medicar reações infantis com causas tão expostas e evidentes, é excluir mais ainda a criança e pretender sanar os problemas socioeducativos literalmente com um mesmo “remédio”, tornando coincidente e oportuna aqui a analogia de Abraham Maslow, psicólogo americano: “Para quem só sabe usar martelo, todo problema é um prego”.

Não bastasse isso, quem dera o debate sobre a medicalização da infância estivesse restrito à avaliação precipitada de crianças em situação de maior vulnerabilidade social. Há muito que a já famosa TDAH (transtorno do déficit de atenção e hiperatividade) se tornou um diagnóstico quase sumário para as inquietações de crianças de todas as camadas sociais que relutam ser enquadradas em modelos padronizados de comportamento.

Desde o século passado, o renomado pediatra e psicanalista infantil Donald Winnicott já havia observado que: “Quando a criança não consegue mais chorar é porque já perdeu a esperança”. Assim, até quando as crianças deverão ser caladas e contidas justamente quando tentam mostrar onde dói? Até quando autoridades optarão pela solução mais higiênica em lugar de ouvir e proteger verdadeiramente as crianças? Até quando a tão lucrativa indústria farmacêutica seguirá preenchendo com comprimidos os vazios que só o contato afetivo, a vontade política e uma sociedade mais justa e igualitária podem de fato preencher? A falta de respostas lúcidas para tantas questões assim é o que realmente deve preocupar e demandar um tratamento eficaz e urgente. (#Envolverde)

* Maria Helena Masquetti é graduada em Psicologia e Comunicação Social, possui especialização em Psicoterapia Breve e realiza atendimento clínico em consultório desde 1993. Exerceu a função de redatora publicitária durante 12 anos e hoje é psicóloga do Instituto Alana. Também é colunista do site Envolverde, onde o artigo foi originalmente publicado.