A crise é muito mais profunda e vai longe

Quem se aflige com os tropeços da política climática global deve prestar mais atenção na economia política global. Não existem compartimentos estanques. Sabemos disso desde o naufrágio do Titanic.

Desde a reunião de Copenhague, as negociações têm se dado em um contexto de grave crise econômica global e impasses políticos locais, regionais e internacionais. Vivemos um momento de transição ainda pouco evidente, nem por isso menos radical. A velha ordem mundial, que atingiu seu clímax nos anos 1990, está desmoronando. A base financeira do capitalismo global, que foi construída a partir de meados dos anos 1980 e amadureceu ao longo das crises da primeira década dos anos 1990, ruiu no colapso da subprime, em 2008, após sucessivas fraturas parciais. Foi essa fissura, que representava, de fato, o início da ruptura definitiva da ordem financeira da primeira era do capitalismo global, que engoliu as negociações sobre o clima em Copenhague.

Desde então, estamos vivendo a mesma crise. É a velha ordem desmoronando. E as sementes da nova ordem, embora já estejam plantadas, ainda não adquiriram impulso suficiente para se imporem. Vicejam, aqui e ali. Fraquejam lá e acolá. Que caminho e fisionomia terão, ainda não está claro.

A maioria dos economistas, desejosa de atender às demandas de um mercado que, embora saiba ganhar nas marés baixas, precisa de boas condições para circular a imensa liquidez que o ameaça afogar, anuncia toda hora o final da crise. Esse final está  aindamuito distante. São poucas as exceções. Nouriel Roubini é uma delas. Desde 2008, disse que a crise seria longa e teria idas e vindas.

Quando sou chamado a analisar respostas de governos à crise, sempre me lembro de um modelo de análise de sistemas aplicado com muito sucesso a crises na gestão empresarial. Chama-se “ajustes que desajustam”. Ações de caráter que imaginam corretivo, sem alcance estrutural, podem aliviar a crise temporariamente, mas tendem a agravá-la, em seguida, provocando novos desajustes. Se os que tomam as decisões continuam com esse mesmo padrão de respostas, cria-se um círculo vicioso de ajustes que levam a novos desajustes, com um efeito bola de neve. Ou seja, a crise se agrava a cada rodada e esse agravamento pode adquirir uma tendência exponencial (veja a imagem).

É o que tem ocorrido, desde antes da crise da subprime. No colapso das hipotecas, a reação imediata dos governos foi definir pacotes fiscais de estímulo econômico, para evitar uma recessão pior da que já estava contratada. A ideia é que esses pacotes comprariam tempo para que fossem implantados novos padrões de regulação financeira e bancária, domésticos e globais, que reduziriam o risco estrutural de novas crises como essa se repetirem no futuro. Esses pacotes eram, no conjunto, paliativos mesmo. Buscavam apenas evitar o agravamento da recessão. É verdade que vários países aproveitaram para introduzir estímulos a mudanças estruturais que incentivassem novos investimentos na chamada “economia verde”, com subsídios à inovação e à pesquisa e desenvolvimento.

O país que mais olhou para o futuro ao desenhar seu pacote de estímulos foi a Coreia. Segundo algumas estimativas 81% dos incentivos foram para a economia verde. A União Europeia no conjunto destinou 59% às novas energias e tecnologias de baixo carbono. A China, 38%. Hoje, é o país que mais investe em energias renováveis. Nos Estados Unidos, estima-se que 12% tiveram esse destino. Em 2010, começaram a surgir os empregos verdes, decorrentes desses investimentos propostos por Obama (veja a tabela).

Investimentos que, a partir de 2008, deram impulso adicional à ordem econômica do futuro. Mas esses empurrões têm sido insuficientes e sofrem descontinuidades por causa dos surtos de agravamento da crise.

A mais recente manifestação da crise – na Europa, a Grécia, e nos Estados Unidos, o impasse fiscal – mostrou a complexidade do problema e ajuda a entender porque não surgem respostas mais estruturais. A crise é complexa porque ela é sistêmica – financeira e fiscal – atinge todo o sistema financeiro e o desempenho fiscal de praticamente todos os países. E é global. A crítica trivial de que a crise não é mundial porque tem seu epicentro nos países desenvolvidos é superficial e inútil. Vivemos uma economia interligada e interdependente. O colapso de qualquer parte ameaça todas as outras de crise. De início, imaginou-se que só problemas nas partes maiores do sistema repercutiriam por todo ele. Agora já se sabe, basta uma Grécia.

O outro elemento de complexidade desta crise, cuja superação definitiva marcará a transição da ordem econômica e política do Século 20 para a nova ordem do Século 21, é político. Não é apenas a estrutura do capitalismo financeiro global que entrou em colapso. As estruturas estatais com seus mecanismos regulatórios e fiscais também estão dando sinais de esgotamento e disfunção. Vivemos o desmoronamento regulatório e fiscal do Estado. Mas não é só uma crise de Estado. É também um crise do sistema político. A governança e a governabilidade vão mal em todos os cantos. Os autoritarismos vão se dissolvendo, espremidos entre o aumento da repressão à beira do genocídio e a revolta popular que a exacerbação da violência estatal não consegue mais sufocar. As democracias vivem um momento decisivo de agravamento de suas contradições internas e stress estrutural determinado por suas limitações. A insatisfação popular com o mau desempenho dos governos democráticos e sua incapacidade de oferecer soluções estruturais aos problemas concretos que afligem suas sociedades é generalizada. Há um problema crescente de qualidade das democracias em todo o mundo. Obama acertou na mosca quando disse que seu país não tem um sistema político AAA. Nenhum país tem. A ficção é que nesse contexto político-econômico existam mercados, empresas ou papéis AAA. Ou seja, sem risco. Ilusão, vivemos uma sociedade, uma economia e uma política de risco.

Um olhar estruturalmente orientado para o quadro global revela com toda a clareza os contornos desse processo de esgotamento estrutural dos modelos do Século 20. E para deixar claro, o colapso do modelo socialista autoritário antecedeu o do capitalismo vigente como parte desse processo. As estruturas mais rígidas se vão primeiro. O capitalismo, por ser mais dinâmico, é mais adaptável. Mas não é invulnerável.

Vivemos tipicamente uma transição. Há uma revolução científica e tecnológica em curso. Novas tendências demográficas redesenham o perfil etário das sociedades. A sociedade digitalizada, com amplas possibilidades oferecidas por esse estágio tecnotrônico da humanidade e a socialização da vida digital, muda os padrões de sociabilidade e de ação coletiva. Esses processos em curso já apontam rumos possíveis dessa transição e dão noção de sua magnitude.

Dou exemplos. Os avanços notáveis em nanotecnologia permitirão radical substituição de materiais na indústria manufatureira como um todo, dos componentes aos produtos finais; dos eletrônicos aos automotivos. A nanotecnologia vai afetar estruturalmente as indústrias química, metalúrgica, alimentar, ótica, farmacêutica, de equipamentos cirúrgicos, militar, entre muitas outras. A genômica e a biotecnologia terão ampla penetração em numerosas dimensões, da energia à saúde; das fibras aos fármacos. A revolução na medicina, para a qual contribuirá também a terapia celular, com base nas células-tronco, aumentará significativamente a expectativa de vida das pessoas, com implicações profundas para a demografia, a economia, a sociedade, o bem-estar humano, o ambiente. As tecnologias digitais e de comunicação, a realidade aumentada, o avanço das redes e mídias digitais, crowd e cloud sourcing, a computação em nuvem, terão forte impacto cultural, político e social. Como o tipo móvel de Gutenberg revolucionou a cultura, quebrou o monopólio da escrita e da leitura, popularizou a bíblia, desaguando na Reforma e nas revoluções liberal-democráticas. Os avanços na neurociência, na robótica, na terapia celular abrirão novos horizontes de possibilidades para a vida humana.

A mudança será provavelmente mais radical que a transição da Idade Média ao Renascimento. Mais revolucionária, economicamente, que a mudança do mercantilismo para o capitalismo. É visível que estamos caminhando para uma nova revolução industrial, muito mais profunda e radical por causa do conteúdo da mudança científica e tecnológica e da convergência e interconectividade das novas tecnologias que vão surgindo e afetando todos os campos da atividade humana.

O agravamento da mudança climática  demarca os rumos necessários da mudança na economia, na energia, no uso da terra e de recursos naturais. Há caminhos vedados, não pela dinâmica de interesses, ou por bloqueio dos setores dominantes da sociedade. Esses serão também superados nessa transição. Os obstáculos são físicos. Estão dados pela possibilidade real e concreta de um cataclismo climático.

Esse lado da complexa conjuntura que vivemos tem dados muito semelhantes aos do lado político e econômico. Só não nos acostumamos ainda a olhá-los do mesmo modo e, mais importante, examiná-los conjuntamente. Vivemos uma crise climática desde 2005. São sete anos consecutivos de eventos climáticos extremos associados a tragédias humanas e sociais, com perdas de vida em número crescente, em várias partes do mundo, e destruição patrimonial significativa.

A crise econômica tende a se agravar com o impasse político nos Estados Unidos, na Europa e a política de ajustes que desajustam. A solução para a dívida foi paliativa. O quadro piora com o rebaixamento dos Estados Unidos pela Standard and Poors. Os Treasure Bonds continuam sendo nível de investimento, mas perderam a hegemonia de padrão de referência que tinham desde que essas avaliações começaram. Em síntese, perdeu-se a referência para o que constitui uma dívida de qualidade, de baixo risco. Em consequência teremos mais incerteza e mais risco. A necessidade de ajuste fiscal, tanto nos Estados Unidos, quanto na Europa, reduzirá o ritmo de crescimento das economias, portanto a receita tributária, afetando, em decorrência, a capacidade de pagamento das dívidas  aumentando a desconfiança e a volatilidade dos mercados. O pagamento das dívidas representará mais sacrifício para as populações, portanto, mais insatisfação popular, logo mais instabilidade política. Tudo isso é inevitável. Está na lógica do movimento. Sem decisões de natureza estrutural esse é o curso praticamente sobredeterminado da conjuntura nos próximos anos.

Com esse agravamento da crise econômica e a redução da capacidade decisória dos governos, muitos deles mergulhados em crises de legitimidade, outros enfrentando períodos eleitorais complicados, conflituosos e incertos, não há cenário bom para a política global do clima. As decisões crucialmente necessárias do ponto de vista científico para que possamos enfrentar a ameaça da mudança climática extrema serão adiadas.

Esse não é um cenário de apocalipse como pode parecer. É um cenário de mudança. Não seria diferente de uma análise em tempo real da transição que marcou o fim das estruturas aristocráticas do Século 19 e que levou a uma longa transição. O processo de dissolução das estruturas aristocráticas começou com as revoluções do final do Século 18 e só terminou, de fato, após a primeira guerra. Uma boa análise das crises dos anos 1890-1910 mostraria eventos interdependentes levando a uma trajetória de mudança avassaladora, com muita violência, dor e sofrimento. A novas estruturas que foram se consolidando nesse processo levaram o mundo, no Século 20, a um ciclo espetacular do progresso, com seu apogeu no final dos anos 1990. Houve um surto curto de crescimento posterior. Foi um soluço.

Vivemos uma nova conjuntura de crises articuladas. Já experimentamos muita violência, dor e sofrimento. Provavelmente há ainda mais por vir. Mas o que isso tudo indica não é o fim do mundo. É o fim de uma era histórica. Uma transição, por longa que seja. Temos alguma capacidade de, com nossas escolhas coletivas, abreviar essa transição. Mas não temos como estancá-la, nem como bloquear a nova ordem. Esses macromovimentos das placas tectônicas da história, sobretudo quando associam fatores físicos, econômicos, sociais, políticos, científicos e tecnológicos, muitos deles determinantes, são inexoráveis. Também não temos forças para conduzir a mudança e definir a fisionomia da nova ordem que surgirá desse movimento. Somos parte dele, somos protagonistas de parte dos impasses e das mudanças, mas não somos capazes de controlá-lo de acordo com nossa vontade.

Parafraseando o inspirado Caetano, tudo está fora de ordem na ordem mundial. Só que não na nova. Nessa, na qual vivemos. E vem aí uma nova ordem global, nova de cabo a rabo. Pouca coisa restará, como vestígio, dessa que estamos deixando para trás.

A nova ordem é inevitável. Já nasceram parte daqueles que viverão nela a maior parte de suas vidas. Não temos como determinar quando ela chegará, nem como ela será. Mas que uma nova ordem global está a caminho, está.

* Publicado originalmente no site Ecopolítica.