Internacional

A última fronteira imobiliária no México

Erosão na praia de Punta Lobos, por causa do hotel em construção, que afeta os pescadores de Todos Santos. Foto: Cortesia de Truth Santos
Erosão na praia de Punta Lobos, por causa do hotel em construção, que afeta os pescadores de Todos Santos. Foto: Cortesia de Truth Santos

por Celia Guerrero, da IPS –

Todos Santos, México, 9/11/2016 – Neste povoado há apenas um semáforo e não funciona. As ruas pavimentadas devem ser varridas diariamente para evitar que o pó desértico sepulte o asfalto. É uma localidade de cinco mil habitantes, na costa do Pacífico da península de Baixa Califórnia, no extremo noroeste do México. Um local internacionalmente conhecido a partir de um mito: aqui fica o Hotel Califórnia, que inspirou a canção do grupo Eagles nos anos 1970.

É um lugar frequentado por estrangeiros (na maioria dos Estados Unidos e do Canadá) atraídos por seu ambiente boêmio e sua paisagem desértica à margem do mar, e onde convivem três populações: nativos, visitantes e forasteiros que se assentaram. O povoado foi fundado por missionários jesuítas no século 18, em uma zona fértil da desértica Baixa Califórnia Sul, um dos dois Estados que dividem a península de Baixa Califórnia.

Durante a intervenção norte-americana no México, em 1845, foi refúgio de rebeldes e a última localidade da península a ser ocupada. Depois dos tratados de Guadalupe Hidalgo, permaneceu como território mexicano. No lugar foram construídos engenhos de açúcar e sua atividade principal no século 20 foi a agricultura, mas a escassez de água fez com que pouco a pouco fosse se transformando em um povoado que vive da pesca e do turismo.

Hoje, na praia Punta Lobos, a mais próxima do centro de Todos Santos, trabalham duas cooperativas de pescadores. Esta é a única praia em quilômetros ao redor, em que as fortes ondas do Pacífico permitem que se entre e saia do mar em suas lanchas. “Muitas famílias dependem disso aqui”, disse Vicente, que trabalha no local há 47 anos. Pelas manhãs sai para pescar e depois vender: luciano-do-golfo, pargo, cavala, carapau, entre outros, como faz sua família há quatro gerações.

Mas a imagem do povoado pesqueiro começou a mudar há dois anos, quando em Punta Lobos começou a construção do hotel-butique San Cristóbal, e com ele a primeira etapa de um projeto maior: Tres Santos, um megaprojeto imobiliário de casas de férias para estrangeiros, que triplicará o tamanho de Todos Santos. A Mira Companies, empresa mexicana com capital norte-americano encarregada do projeto, investirá US$ 325 milhões nessa obra, que poderá abrigar mais de 60 mil habitantes, 12 vezes a população atual de Todos Santos.

“This is our last frontier” (Esta é nossa última fronteira), afirma uma norte-americana que vive há dez anos em sua casa de férias à margem do Oceano Pacífico nessa pequena localidade sul-californiana, que fica mais de 1.700 quilômetros ao norte da Cidade do México. Três Santos se destina a um público estrangeiro que quer uma casa à beira do mar, longe dos grandes hotéis de Los Cabos. Promove um estilo de vida ecológico, economicamente sustentável, holístico e de bem-estar.

Entretanto, o que a Mira Companies projeta é uma área habitacional e turística de 414 hectares, que incluirá: 4.470 casas, um viveiro da Universidade Estatal do Colorado (CSU, dos Estados Unidos), áreas comerciais, hortas orgânicas, três hotéis-butique, uma granja, um clube de natação privado e até uma unidade dessalinizadora.

Muro quebra-ondas e hotel San Cristóbal na Praia de Lobos. Foto: Celia Guerrero/Pé de Página
Muro quebra-ondas e hotel San Cristóbal na Praia de Lobos. Foto: Celia Guerrero/Pé de Página

Shannon Gillespe, chefe de vendas de Tres Santos, explicou que a Mira fez pesquisas de mercado para determinar qual deveria ser o enfoque de seu projeto. “Era evidente que havia necessidade de algum tipo de alternativa para as comunidades turísticas fechadas, com campos de golfe. Esse é um enorme mercado no México. Mas há pessoas que querem algo diferente: se sentirem acolhidas pela comunidade, aprender como é, integrar-se a ela”, acrescentou.

Não tem sido assim. Três Santos desatou uma controvérsia entre os habitantes – nativos e estrangeiros – desde a apresentação pública do projeto, em julho de 2013. Apesar da oposição, o projeto foi aprovado cinco meses depois pelo então delegado estatal do Ministério de Meio Ambiente e Recursos Naturais (Semarnat), José Carlos Cota Osuna.

As obras da construção começaram e, em março de 2015, a tensão entre moradores e empresa aumentou quando a imprensa local revelou que a Mira havia quebrado uma das promessas que fez à comunidade: não utilizar água do município de La Paz e construir uma unidade dessalinizadora para gerar seu próprio fornecimento de água. Inclusive, a empresa havia admitido que a região sofre um “severo déficit de água”, em um informe de viabilidade datado de 2012.

Todos Santos fica sobre um aquífero que em anos recentes apresentou déficit. Uma análise de dados da Comissão Nacional da Água feito pela iniciativa civil Cartocrítica, diz que são extraídos por segundo 37 litros de água subterrânea desse aquífero. O então titular do Órgão Operador de Água Potável, Esgoto e Saneamento de La Paz, Héctor García González, reconheceu que o empreendimento havia pago direitos de conexão à rede de água potável municipal. Meses depois, a companhia reconheceu que o fez para a primeira parte do projeto.

Antes de ser apresentado ou aprovado o projeto de Tres Santos, em dezembro de 2011, a Semarnat concedeu a concessão da praia Punta Lobos à FRBC-Todos Santos (sociedade criada pela Mira Companies) sem considerar que duas cooperativas de pesca tinham concessões na mesma área.

Ariel Ruiz, presidente da cooperativa Punta Lobos, explica que, em 2014, quando revisaram as coordenadas das concessões aos pescadores percebeu-se que uma está na ponta de um risco e outra o meio do mar. Nessa oportunidade, o próprio Costa Osuna argumentou que se tratou de um erro de medição e que as cooperativas e a empresa deveriam chegar a um acordo.

O pescador Francisco Javier Torres, da cooperativa Punta Lobos. Foto: Celia Guerrero/Pé de Página
O pescador Francisco Javier Torres, da cooperativa Punta Lobos. Foto: Celia Guerrero/Pé de Página

“A natureza cobra o que é seu”, disse Francisco Javier Torres, de 41 anos, pescador há 25. “O bonito que havia em nossa praia era a entrada, os mangues, todo o charco. Tudo isso que tínhamos já nos tiraram, puseram o desprezível hotel aí para tapar tudo isso”, acrescentou.

Em setembro de 2015, quando a tempestade tropical Linda se formou no Pacífico, a maré subiu tanto em Punta Lobos que a praia desapareceu. A empresa disse que foi uma maré irregular e que seu interesse não é tirar os pescadores da praia. Na verdade, a área de pesca foi reduzida e vários pescadores afirmam que, desde a construção do hotel, as marejadas são recorrentes.

“A que outra coisa poderíamos nos dedicar? Trabalhar no hotel? Quanto podem nos pagar para andar por aí de vigia? Aqui do mar é que sai o que dá bem-estar à família. É muito difícil buscar um trabalho, tantos anos aqui e de repente, de um dia para outro… É muito difícil. Não concordamos. Não queremos deixar nosso trabalho. Por isso lutamos para que não nos afete profundamente tudo isso, embora já esteja nos afetando”, destacou Francisco Javier.

As ondas acabaram detonando o conflito entre população e empresa. No caminho para a praia onde se constrói o hotel San Cristóbal, pescadores e habitantes de Todos Santos em duas oportunidades interromperam a passagem. Pedem que seja respeitado seu direito histórico de ocupação da praia.

No dia 29 de outubro de 2015, montaram um primeiro acampamento. Depois tiveram várias reuniões com autoridades e empresa para expor suas denúncias. Até que, em 21 de janeiro de 2016, quatro membros da mesa diretora da cooperativa Punta Lobos assinaram um convênio com a Mira sem informar antecipadamente seus associados, o que fez com que fossem retirados de seus cargos e os acordos foram desfeitos.

“Perguntou-se à mesa diretora e às pessoas que chegaram do governo se tinham alguma aproximação ou se o governo tinha informação sobre algum tipo de acordo e negaram. No dia seguinte divulgaram o acordo que celebraram, no quel o funcionário que havia negado uma aproximação assinou como testemunha. Imaginem a podridão”, destacou Ariel Ruiz.

Em 23 de janeiro, ativistas convocaram uma marcha contra Tres Santos. A resposta surpreendeu os organizadores: mais de 300 pessoas se manifestaram. Nesse mesmo dia, durante o Festival de Música de Todos Santos, Peter Buck, músico norte-americano, ex-guitarrista do R.E.M., convidou os presentes a se organizar e defender seu povoado de “políticos corruptos e desenvolvedores vorazes”. Cinco dias mais tarde deixou o México sob suposta ameaça de deportação.

Para Javier Barrios, diretor da Mira, os que se opõem a Tres Santos são “instigadores”. No dia 15 de dezembro de 2015, a empresa apresentou uma demanda pelo crime de despojo e associação criminosa contra cinco pessoas que apoiavam os pescadores com o acampamento no caminho da praia. “Após meses de diálogo com os pescadores e outras partes interessadas, ficou evidente que esses cinco instigadores (nenhum deles pescador) não cederiam”, respondeu, por e-mail.

Ricardo Madrazo e Jamie Sechrist, documentaristas processados pela Mira, afirmam que a empresa mostrou sua verdadeira cara no dia 2 de fevereiro, quando policiais federais e membros da Polícia Municipal desocuparam o acampamento. A gravação que fizeram naquele dia mostra a discussão entre oficiais e pescadores, e dezenas de antimotins avançando contra as pessoas de plantão, que finalmente se retiraram.

Centro de pesquisa da norte-americana Universidade Estatal do Colorado, em Todos Santos. Foto: Celia Guerrero/Pé de Página
Centro de pesquisa da norte-americana Universidade Estatal do Colorado, em Todos Santos. Foto: Celia Guerrero/Pé de Página

O secretário de governo, Álvaro de la Peña, declarou nesses dias que a operação aconteceu porque os pescadores bloqueavam uma via pública, mas eles afirmam que o caminho estava aberto, menos para caminhões da construtora. E o diretor da empresa de imediato jogou a bola para o governo do Estado, que “de forma autônoma tomou a decisão de retirar os manifestantes”.

Para esta reportagem foi solicitada a versão do governo de Baixa Califórnia Sul por intermédio do subsecretário-geral, Esteban Beltrán Cota, representante do Executivo na negociação entre pescadores e empresa, e do secretário de desenvolvimento econômico, meio ambiente e recursos naturais, Rodrigo Guerrero Rivas, mas até a publicação desta matéria não houve respostas.

Da residência de estudantes da CSU pode-se ver cruzes e arranjos florais típicos dos panteões mexicanos. Trata-se de um centro de pesquisa em Todos Santos, o segundo campus de uma universidade norte-americana em território mexicano e que foi construído como parte de Tres Santos. A CSU, uma instituição reconhecida por seus programas de pesquisa em ciências ambientais, é fortemente criticada por sua associação com a Mira, que doou cinco hectares e os prédios do centro, que fica bem ao lado do panteão do povo.

A presença da CSU em Tres Santos é bem capitalizada pela empresa. O diretor da Mira promove o projeto como algo inovador que, em lugar de ter um campo de golfe, terá um centro dedicado à pesquisa da água e da agricultura. Mas utilizar o que a mídia norte-americana chama de greenwashing ou green marketing (percepção de promover políticas ambientalmente responsáveis) não serviu para mitigar as críticas ao projeto, que ativistas qualificam de depredador disfarçado.

Leticia Maldonado, ex-aluna e presidente da Organização de Estudantes Latino-Americanos da CSU, visitou há dois anos Todos Santos para conhecer o novo centro. “A comunidade nos disse claramente: não queremos mais desenvolvimento, estão acabando com nossa terra, com nossa água, estão invadindo nossas comunidades. Tudo o que eles (os representantes do Mira) diziam encaixava: ‘Isto será orgânico, será sustentável’. A onda super-hippie, mas imperialista”, pontuou.

Apesar de apresentar um informe de inconformidades à Junta de Governadores da universidade, a sociedade da CSU com a Mira continuou e o viveiro foi inaugurado em janeiro de 2016. Mas por que uma universidade norte-americana pública com perfil ambientalista recebe um centro de pesquisa de uma empresa que tem um projeto criticado por suas consequências contra o ambiente?

A resposta é que a doação foi idealizada por um poderoso grupo investidor dos Estados Unidos baseado em Denver, no Estado do Colorado, que é fundador e impulsionador econômico da Mira Companies: o Black Creek. McKenzie Campbell, diretora do Centro da CSU em Todos Santos, confirmou que as negociações da doação se deram entre o diretor universitário, Tony Frank, e o diretor do Black Creek, Jim Mulvihill.

Localização de Todos Santos na península de Baixa Califórnia e dimensão do projeto Tres Santos. Foto: Cortesia da organização Salvemos Punta Lobos
Localização de Todos Santos na península de Baixa Califórnia e dimensão do projeto Tres Santos. Foto: Cortesia da organização Salvemos Punta Lobos

A influência do Black Creek parece não ver fronteiras. O grupo é ligado ao ex-presidente Carlos Salinas de Gortari, por intermédio de seu cunhado, Jerónimo Gerad Rivero, que preside outra das empresas criadas pelos investidores: México Retail Properties, acusada de usar influências políticas para conseguir autorização de construção em uma área arqueológica de Valle de Bravo, no Estado do México.

É casualidade um projeto de casas para estrangeiros como Tres Santos ter sido planejada para a península de Baixa Califórnia? Não, considerando que seus dois Estados somam a maior porcentagem de norte-americanos residentes no México. Mas há outros fatores. Segundo os informes do Centro Hispano Pew, a partir de 2007, “o fluxo migratório do México para os Estados Unidos se deteve e pode estar invertido. O ponto morto parece ser o resultado de diversos fatores, entre eles o debilitamento do mercado de trabalho e da construção de casas nos Estados Unidos”.

A última crise econômica dos Estados Unidos colocou Baixa Califórnia na mira de investidores imobiliários que oferecem o full-time dream vacation, ou casas para aposentados norte-americanos no México, pois enquanto uma residência na costa da Califórnia, nos Estados Unidos, pode custar até US$ 1 milhão, em Tres Santos é cotada entre US$ 200 mil e US$ 400 mil.

“Quando a economia norte-americana tem algum deslize, essas vendas diminuem consideravelmente. Uma vez que os índices econômicos voltam a subir nos Estados Unidos, todos os desenvolvimentos são beneficiados, sobretudo em zonas costeiras”, explicou Gustavo Adolfo Núñez Gaxiola, vice-presidente executivo da Associação de Desenvolvedores Imobiliários Ocidente (Adio), que prevê que o investimento nesses projetos aumentará.

Por isso, outros megaprojetos turísticos-imobiliários foram promovidos no Estado nos dois governos anteriores. Em Cabo del Este, na costa do Golfo da Califórnia, organizações ambientais documentaram pelo menos 18 projetos que pretendem se instalar em um costado do arrecife Cabo Pulmo, em uma zona de produtividade biológica cinco vezes superior a qualquer outro arrecife no México, catalogada como Área Natural Protegida.

O governo mexicano (nos três níveis e sob diferentes administrações) tem o papel de juiz e parte no conflito, segundo ativistas e pescadores. Prova disso, dizem, é o desmantelamento da barreira, em 2 de fevereiro de 2016, quando foram usados policiais municipais e federais.

No papel, o que permite que o projeto siga é o Programa Subrregional Todos Santos-El Pescadero-Las Playitas, promovido desde 2008 por Marco Antonio Domínguez Valles, ex-diretor de Desenvolvimento Urbano e Ecologia municipal de La Paz durante a administração da prefeita Rosa Delia Montaño, do PRD, e atual perito responsável pela obra de Três Santos.

Guillermo Tito Fenech Cardoza, sócio e sucessor de Valles na direção de Desenvolvimento Urbano, com a prefeita do PRI, Esthela Ponce, autorizou em 2014 o plano de uso do solo. E agora a municipalidade e o Estado (do partido PAN) também parecem apoiar o projeto.

Embora a IPS tenha tentado entrevistar diferentes funcionários municipais e estaduais envolvidos no caso, só o atual diretor de Desenvolvimento Urbano e Ecologia, Armando Anaya Carbajal, respondeu, dizendo que o plano-mestre de uso do solo de Tres Santos está em revisão porque apresentou “algumas inconsistências”. Entre outras, não tem uma área de doação em frente à zona federal marítima, como manda o regulamento.

“Tiveram que redesenhar o plano-mestre, que já está autorizado pelo governo do Estado, faltando o nosso. O que acontece é que está autorizado. Não podemos dizer que não está sendo cumprido. Está, ou seja, não está de acordo com a lei, mas no final das contas está autorizado”, disse o funcionário. A Lei de Desenvolvimento Urbano e Ecologia da Baixa Califórnia Sul diz que as construções feitas sem licença, autorização ou que não cumprem planos ou programas de desenvolvimento urbano poderão ser fechadas.

Hoje, o projeto Tres Santos é um hotel em obras que abrirá em janeiro de 2017: uma pequena horta nos limites do centro de Todos Santos e nove casas, ainda em construção, junto a um viveiro recém-inaugurado da CSU. Um anúncio de boas vindas de Tres Santos diz  “Amigo pescador e visitantes: este caminho é livre para seu beneficio e sua diversão”. Um guarda armado com escopeta e um cão de ataque vigiam a entrada da praia Punta Lobos. Envolverde/IPS

* Este artigo foi originalmente publicado pelo Pé de Página, um projeto da organização Jornalistas a Pé. A IPS – Inter Press Service – tem acordo especial com essa organização para difusão de seus materiais.