Internacional

Receitas contra males alimentícios

A mexicana Araceli Márquez pronta para preparar pratos tradicionais da rica e nutritiva cozinha tradicional de seu país, durante uma feira popular na Cidade do México. Foto: Emilio Godoy/IPS
A mexicana Araceli Márquez pronta para preparar pratos tradicionais da rica e nutritiva cozinha tradicional de seu país, durante uma feira popular na Cidade do México. Foto: Emilio Godoy/IPS

por Emilio Godoy, da IPS –

Cidade do México, México, 1/6/2016 – Em uma panela de barro a mexicana Araceli Márquez mistura alguns pequenos peixes, conhecidos como charales e próprios dos lagos do México, com ervas e molho de alho, tomate verde e cactos, para preparar um prato chamado mixmole. “Aprendi a cozinhar perguntando às pessoas e provando. Os ingredientes são naturais da região. É uma forma de retomar a alimentação natural, diante de tanta obesidade e enfermidade”, contou à IPS esta mulher de 55 anos, separada e com duas filhas.

O mixmole, de cor esverdeada, sabor forte e um aroma que se espalha pelo ambiente, é um dos pratos tradicionais do povoado de San Andrés Mixquic, na demarcação territorial de Tláhuac, no sudeste da Cidade do México e uma das 16 em que se divide a capital, cuja área metropolitana engloba 21 milhões de pessoas. Márquez pertence à cooperativa Rota Patrimonial e Turística de Vida e Morte em Tláhuac, dedicada à gastronomia e ao ecoturismo. Os pratos são elaborados com base em receitas ancestrais e seus ingredientes provêm de produtores locais.

Outro prato de seu repertório é o tlapique, ou tamal (massa de milho recheada) de pescado, que contém esse produto junto com cactos, também conhecidos como figo da Índia (Opuntia fícus-indica), chile, como a pimenta ou o alho é chamado no México, a erva aromática mentruz (Dysphania ambrosioides), e xoconostle (Opuntia joconostle), outro fruto da família dos cactos do deserto mexicano.

“Procuramos mostrar às pessoas a cultura e a culinária da região. Houve uma pequena resposta, gostaram”, pontuou Márquez, que vive no povoado de San Bartolo Ameyalco, parte de Tláhuac. A prática culinária de Márquez exibe a riqueza da cozinha mexicana e os esforços por sua defesa e promoção, neste país de quase 120 milhões de habitantes, submetido a obesidade, sobrepeso e suas sequelas, como diabetes, hipertensão e problemas cardíacos e estomacais.

A gastronomia mexicana, reconhecida como uma das maiores do mundo, possui tradição milenar e gira em torno do milho, feijão e alho, os elementos utilizados pelos povos originários desde muito antes da chegada dos conquistadores espanhóis, no século 16. As receitas se enriqueceram com as contribuições dos invasores e é abundante em vegetais, verduras, ervas e frutas, em um mural repleto de aromas, sabores, nutrientes, vitaminas e minerais.

Ativistas oferecem feijões na avenida Reforma, na Cidade do México, para conscientizar a população sobre o consumo desse alimento, básico na dieta mexicana, produzido com sementes crioulas e sem modificação genética, para contribuir com a segurança alimentar do país. Foto: Emilio Godoy/IPS
Ativistas oferecem feijões na avenida Reforma, na Cidade do México, para conscientizar a população sobre o consumo desse alimento, básico na dieta mexicana, produzido com sementes crioulas e sem modificação genética, para contribuir com a segurança alimentar do país. Foto: Emilio Godoy/IPS

Liza Covantes é outra pessoa dedicada a resgatar a alimentação tradicional baseada em produtos locais, tendo participado, em 2015, da fundação da cooperativa de produção e troca Zacahuitzco, localizada no sul da capital mexicana. “Somos várias pessoas trabalhando pelo direito à alimentação e para comer bem, e sem muito dinheiro nos juntamos para fomentar a alimentação saudável. Assim se exerce o direito a alimentação, saúde e ambiente sadio”, ressaltou à IPS.

A cooperativa reúne cerca de 45 famílias que produzem alimentos como pães, queijos e verduras. Para distribuí-los, fundaram em novembro a loja Mawi, que significa “dar de comer” na língua indígena totonaca. “Não aceitamos nada com componentes sintéticos”, explicou Covantes. A cooperativa vende pacotes de alimentos de aproximadamente seis quilos que sempre incluem verduras.

A reputação mundial da cozinha tradicional mexicana é um dos ímãs para o turismo internacional. De fato, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) incluiu, em 2010, esta culinária na lista do Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, por seu valor como herança cultural, ancestral e comunitária, vigente até os dias de hoje.

Para citar alguns exemplos, há 200 variedades de alho nativas do México, são conhecidas 600 receitas com milho e 71 preparadas de diferentes maneiras, uma mistura de molhos e especiarias. Porém, o paradoxo para o México é que esta grande riqueza culinária se contrapõe com uma epidemia de obesidade e sobrepeso, cuja origem está na proliferação na deita da população de comida industrializada, cheia de açúcar e gordura.

A Pesquisa Nacional de Saúde e Nutrição 2012 mostra que 26 milhões de adultos têm sobrepeso, 22 milhões sofrem obesidade e cerca de cinco milhões de crianças são vítimas dessas enfermidades, o que gera custos cada vez maiores para o Estado. Essa medição também revelou que mais de 20 milhões de famílias se encontravam em alguma categoria de insegurança alimentar.

“Sua importância está na diversidade de alimentos existentes”, apontou à IPS a especialista Delhi Trejo, sobre a comida tradicional do país. “Contamos com uma grande variedade de frutas, verduras e grãos, que são fontes importantes de fibras, vitaminas, proteínas e minerais. Seus custos são baixos e têm benefícios ambientais”, detalhou à IPS a consultora principal de nutrição no escritório no México da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO).

María Solís, uma camponesa que produz milho de diferentes variedades e cores, enquanto debulha uma espiga em San Juan Ixtenco, no Estado de Tlaxcala, durante a festa típica dedicada a esse grão, originário do México, seu principal cultivo e base da dieta de sua população. Foto: Emilio Godoy/IPS
María Solís, uma camponesa que produz milho de diferentes variedades e cores, enquanto debulha uma espiga em San Juan Ixtenco, no Estado de Tlaxcala, durante a festa típica dedicada a esse grão, originário do México, seu principal cultivo e base da dieta de sua população. Foto: Emilio Godoy/IPS

A FAO designou 2016 como Ano Internacional das Leguminosas, justamente um dos principais itens da gastronomia mexicana. O valor da cozinha asteca não é apenas nutricional, pois a preparação de alimentos emprega mais de cinco milhões de pessoas e 500 mil restaurantes formais, que respondem por 2% do produto interno bruto da segunda economia latino-americana.

Por essas razões, vinculadas à melhora da nutrição e em defesa de um importante setor econômico, o governo lançou, em agosto do ano passado, uma Política de Fomento à Gastronomia Nacional, que pretende desenvolver e potencializar a oferta gastronômica do país, fomentar o turismo e gerar o desenvolvimento econômico local e regional, por meio da oferta gastronômica e de sua cadeia de valor produtiva. Mas as medidas governamentais ainda não deram dividendos claros.

“A dieta tradicional seria uma solução para a diabetes ou a obesidade. É indispensável voltar a ela. A comida é nossa medida, somos o que comemos”, destacou à IPS a pesquisadora independente Cristina Barros.

As Diretrizes Dietéticas, lançadas em 2010 pelos Estados Unidos, indicam que as pessoas que consomem dietas tradicionais baseadas em plantas têm menor propensão a câncer, doenças coronárias e obesidade do que aquelas cuja alimentação se baseia em alimentos processados. Márquez pede mais apoio e promoção. “Há ajuda, mas não o suficiente. Tomara que o programa federal dê resultados”, afirmou esta cozinheira tradicional cuja meta para este ano é preparar um índice de receitas de Tláhuac.

Para Trejo, parte do problema é que um setor da população associa erroneamente a comida tradicional com a que é vendida em bancas de rua ou pontos de venda precários. “É necessário que o país impulsione a gastronomia e se livre das falsas ideias de combinação de gorduras, açúcares e comida industrializada que penetra cada vez mais em todas as partes e coloca em risco a cozinha tradicional”, enfatizou.

Já há experiências em diferentes partes do México nesse sentido, como a do Estado de Chiapas, um dos mais pobres do país, onde várias organizações lançaram, em abril de 2015, a campanha Projeto Pozol: Mais Saudáveis Comendo Como Mexicanos, destinada a fomentar o consumo de pozol, uma bebida altamente nutritiva derivada do milho.

No dia 28 de abril, o Senado mexicano aprovou o projeto de lei federal de fomento à gastronomia, que apresenta medidas para fortificar o setor. A iniciativa agora está em fase de aprovação definitiva pelo Congresso dos deputados. “Com os coletivos, pode-se defender estes princípios e criar uma tendência social a favor dos valores nutricionais de nossa gastronomia, para também beneficiar os produtores locais”, destacou Covantes. Envolverde/IPS