Internacional

ONU admite responsabilidade em epidemia de cólera

Manifestante segura um cartaz contra a ONU durante um protesto em frente à base da organização em Porto Príncipe, no Haiti. Foto: AnselHerz/IPS
Manifestante segura um cartaz contra a ONU durante um protesto em frente à base da organização em Porto Príncipe, no Haiti. Foto: AnselHerz/IPS

Por Phoebe Braithwaite, da IPS – 

Nova York, Estados Unidos, 24/8/2016 – Seis anos depois de as forças de paz da Organização das Nações Unidas terem levado o cólera parao Haiti, o fórum mundial reconheceu sua responsabilidade na epidemia que causou a morte de dezenas de milhares de pessoas e deixou doentes centenas de milhares no país mais pobre do continente americano.

“A ONU chegou à convicção de que é preciso fazer muito mais com relação à sua própria participação no foco inicial e no sofrimento das pessoas afetadas pelo cólera”, disse Farhan Haq, porta-voz adjunto do secretário-geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon, em um comunicado. “A ONU está trabalhando para adotar um novo conjunto significativo de ações”, cujos detalhes serão apresentados nos próximos dois meses, informou.

“Esse é um primeiro passo inovador para a justiça”, afirmou Beatrice Lindstrom, advogada das vítimas do cólera e colaboradora do Instituto para a Justiça e a Democracia no Haiti (IJDH), esclarecendo que “a verdadeira prova está no que virá depois”.Segundo ela, “a ONU deve seguir esse anúncio com medidas, incluídas uma desculpa pública, um plano para compensar as vítimas que tanto perderam, e a garantia de que o cólera será eliminado no Haiti por meio de um forte investimento na infraestrutura de água e saneamento. Vamos continuar lutando para isso”.

Lindstrom ressaltou que “as promessas não impedirão que o cólera mate nem compensarão as famílias pobres do Haitipelo dano”.O IJDH, além de representar as vítimas em colaboração com a organização haitianaEscritório de Advogados Internacionais, encabeça uma campanha mundial que cobra da ONU resposta justa e critica Ban por sua falta de liderança decisiva nesse tema, que prejudicaria a ética das forças de manutenção de paz.

Durante anos a ONU negou sua responsabilidade e afirmou que tinha imunidade no assunto, e a admissão atual ocorreu após as provas que surgiram de uma investigação realizada pelo Escritório de Serviços de Supervisão Interna das Nações Unidas. A investigação mostrou que a Missão de Estabilização no Haiti (Minustah) lançou nos canais haitianos, até 2015, esgoto tratado inadequadamente, entre outras práticas negligentes.

Os especialistas acreditam que o cólera foi introduzido no Haiti em 2010, pelas forças de paz do Nepal, quando lançaram esgoto infectado no rio Arbonite. A missão de estabilização integrava os esforços de ajuda depois do devastador terremoto que matou 220 mil haitianos naquele ano. Os últimos estudos sugerem que 30 mil pessoas morreram de cólera no país e que mais de dois milhões sobreviveram à doença, bem acima das estatísticas citadas antes, que indicavam 9.202 mortes e 754.735 pessoas afetadas.

Diferentes vozes da comunidade internacional, inclusive dos Estados Unidos e da própria ONU, exigiam do fórum mundial que assumisse a responsabilidade por sua suposta negligência ao permitir que forças de paz do Nepal levassem o cólera parao Haiti, onde a doença antes não era endêmica. A questão surgiu no contexto da corrida para eleger o próximo secretário-geral da ONU. Alguns candidatos ao cargo se declararam a favor de apresentar desculpas às vítimas, o que reflete a opinião generalizada de que as Nações Unidas não podem deixar o problema sem solução.

“Creio que a integridade das Nações Unidas na realidade foi chamuscada”, afirmou a candidata costa-riquenha, Christiana Figueres, em um debate televisionado pela rede de notícias Al Jazeera, no dia 12 de julho. “Espero ter a oportunidade de pedir desculpas ao Haiti”, disse, posteriormente, à IPS.A questão mais polêmica é se a ONU deveria indenizar as vítimas, que segue sem resposta. Os advogados do IJDH esperam a sentença do Segundo Tribunal de Circuito de Apelações dos Estados Unidos, onde o caso foi apresentado em 1º de março.

Lindstrom pontuou que a imunidade da ONU, segundo estabelece a Convenção sobre os Privilégios e Imunidades das Nações Unidas (1946), é violada quando “não são adotadas medidas adequadas” para resolver as reclamações que surgem de seus atos ilícitos.Pelo Acordo sobre o Estado das Forças entre a ONU e o governo haitiano, a Minustah deveria criar uma comissão independente para revisar as reclamações das vítimas, algo que não foi feito. “Há uma obrigação recíproca muito clara de garantir que exista alguma outra maneira de administrar a situação”, ressaltou.

Ao contrário de outras situações de más práticas, como as de exploração e abuso sexual, “o caso do cólera é em muitos aspectos extremamente atípico”, já que a ONU havia se negado a reconhecê-lo, explicou Lindstrom. Assim, a admissão pública pela ONU é importante,mas ainda não oferece o recurso que as vítimas necessitam com urgência, a desculpa pública, um plano de indenização, o compromisso com a erradicação do cólera no Haiti e, por fim, a criação de uma comissão formal para processar as queixas das vítimas, acrescentou.

“É triste termos que gastar tanta energia para que a ONU respeite seus próprios princípios, mas creio que, além do apoio às vítimas, parte da razão pela qual vale a penaé o fato de, em última instância, acreditarmos que teremos uma instituição mais forte”, enfatizou Lindstrom.

A mudança de postura da ONU, segundo informou o jornal The New York Times no dia 17 deste mês, se deu depois que o escritório do secretário-geral recebeu um rascunho do relatório sobre o cólera no Haiti, realizado pelo norte-americano Philip Alston,relator especial sobre extrema pobreza e direitos humanos, que provavelmente será publicado em setembro.

Caso a ONU se responsabilize pelo pagamento da indenização às vítimas do cólera no Haiti, é provável que os Estados membros paguem a conta. Por ser o maior contribuinte para o orçamento das Nações Unidas, a carga recairia principalmente sobre os Estados Unidos, cujos tribunais de justiça terão que decidir o caso. Envolverde/IPS