Internacional

Direito ao solo urbano, o que o vento não leva

Uma rua do precário bairro de Hornos, no município de Moreno, no oeste da Grande Buenos Aires, a extensa área metropolitana da capital argentina. Seus habitantes esperam pelo título de propriedade do solo, como chave de acesso a outros direitos e serviços que dignifiquem seu urbanismo e suas vidas. Foto: Fabiana Frayssinet/IPS
Uma rua do precário bairro de Hornos, no município de Moreno, no oeste da Grande Buenos Aires, a extensa área metropolitana da capital argentina. Seus habitantes esperam pelo título de propriedade do solo, como chave de acesso a outros direitos e serviços que dignifiquem seu urbanismo e suas vidas. Foto: Fabiana Frayssinet/IPS

Por Fabiana Frayssinet, da IPS – 

Moreno, Argentina, 25/7/2016 – Agora que o vento não leva mais o telhado e a casa é sua, a argentina Cristina López se sente protegida no assentamento informal onde vive. Mas, para pisar firme no solo que ocupa, ela e seus vizinhos terão que conquistar muitos outros direitos. Não se queixa porque antes de se mudar, há quatro anos, com seu filho adolescente para o novo bairro de Hornos, no município de Moreno, no oeste da Grande Buenos Aires, sua situação era muito pior.

López pagava aluguel, até que o município lhe deu um terreno, onde construiu uma precária casa. “Como a construí sozinha, não tinha estabilidade e uma das tempestades levou o telhado”, contou à IPS, o que a obrigou a viver com seu filho em casas de amigos e vizinhos.A nova casa foi erguida com ajuda da Techo, uma organização não governamental que promove a moradia digna nos assentamentos informais das cidades da América Latina e do Caribe, mediante a ação conjunta de moradores e voluntários.

Em Los Hornos, com 200 famílias, e no vizinho bairro de Los Cedros, que acolhe 1.200 famílias, a Techo construiu 225 pequenas casas unifamiliares. São simples e de baixo custo, erguidas em apenas dois dias e destinadas a resolver “emergências habitacionais”.Porém, para, de 59 anos e que faz diferentes trabalhos para se manter e ao seu filho de 15 anos, fez a diferença entre a indigência e a dignidade.

“Foi a mudança total. Não há nada comparado a isso. Nos damos conta de que a partir de uma casa se começa a mudar sua forma de vida, porque sabemos que isso é próprio e que, embora ainda não tenha a documentação, o teto é meu. E este teto ninguém tira”, destacou.Os documentos são o título de propriedade, que deve ser entregue pela municipalidade que cedeu o terreno, e não possuí-los a deixa intranquila. “Sempre tem alguém pronto a reclamar que o terreno é dele. Até que o município diga que é seu, não se pode ter segurança”, explicou.

Para deixar de ser uma “cidadã de segunda classe”, também falta contratar serviços como água corrente, esgoto ou eletricidade com relógio medidor, para que “não haja corte de tempos em tempos”, acrescentouLópez.Além disso, Los Hornos está a 42 quilômetros da capital e a mais de 20 do centro domunicípio, e tudo fica longe. “Não temos uma escola perto, um centro de saúde, não entram ambulâncias, não temos ruas, falta tudo”, resumiu.

“Os direitos vulneráveis são reconhecidos em muitas coisas e o assentamento é a maior expressão de desigualdade e direitos vulnerados”, ressaltou à IPS o diretor de Regiões daTecho Argentina, Francisco Susmel. Não ter segurança da posse também não dá garantia de que não haverá um despejo, que podem melhorar a casa e seu entorno”, e igualmente afeta seu direito de acesso a alguns serviços, acrescentou.

Uma pesquisa realizada, em 2013 pela Techo, em 1.834 assentamentos das maiores cidades argentinas, onde vivem 432.800 famílias, mostra, entre muitas outras vulnerabilidades, aquelas ligadas ao solo, em uma situação que se repete nos assentamentos pobres e lotados das cidades latino-americanas. O documento revelou que 64% dos solos desses conglomerados urbanos inunda, enquanto 41% ficam a menos de dez metros de um rio ou um canal e 25% de um lixão.

“O solo condiciona a desigualdade, porque hoje é apropriado por um grupo seleto de pessoas e não está à disposição do resto da população”, enfatizou à IPS o sociólogo Juan Pablo Duhalde, diretor do Centro de Pesquisa Social da Techo Internacional.Segundo Paola Bagnera, autora do livro O Direito à Cidade na Produção do Solo Urbano, publicado pelo Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso), o solo urbano é um dos elementos que condicionam a desigualdade no exercício do direito à cidadania.

“Quando falamos de solo urbano, nos referimos à terra, ao território, a esse suporte básico que forma a cidade, que é o suporte onde são traçadas as ruas, os quarteirões, que requer a presença de redes (água, luz, esgoto, etc.)”, pontuou à IPS esta arquiteta e especialista em habitat, urbanismo e pobreza urbana da Universidade Nacional del Litoral, na Argentina.

“Em um esquema de mercado, o valor que o solo ganha tem direta relação com a localização (proximidade ou distância), a presença ou ausência de serviços e equipamentos, e as características ambientais (que derivam em diversas condições de exposição ao risco)”, acrescentouDuhalde.Por exemplo, nos anos 1990, a construção na Argentina de empreendimentos imobiliários, como bairros fechados em áreas suburbanas, encareceu terrenos até então de pouco valor, que os setores popularesocupavam.

“Esse fato se converte em um dos elementos determinantes da configuração do habitat dos setores populares nas grandes cidades: deslocar-se para áreas cada vez mais periféricas ou acrescentar densidade em espaços já configurados como assentamentos ou ‘vilas’ nos próprios centros urbanos”, indicouBagnera.Como consequência, citou exemplos como a “construção em altura” nos assentamentos pobres e lotados (na Argentina chamados de vilas-miséria) em capitais como Buenos Aires, e o encarecimento desmedido do preço de venda e aluguel desses imóveis.

“Pensando na América Latina, na realidade dos assentamentos, quando o mercado toma decisões sobre a distribuição do solo, é quando estamos fazendo referência ao fato de estarmos nos governando de uma forma pouco eficiente e pouco projetada no tempo”, completou Duhalde.Para este especialista, o direito de acesso ao solo urbano deve ser um dos temas centrais da discussão da Terceira Conferência das Nações Unidas sobre Moradia e Desenvolvimento Sustentável (Habitat III), que acontecerá na capital do Equador em outubro e de onde deve sair uma Nova Agenda Urbana mundial.

“O mercado do solo é um mercado imperfeito, que hoje reproduz as desigualdades no acesso ao solo, porque está nas mãos de um grupo minoritário, orientado para gerar rentabilidade não para o coletivo”, apontouBagnera.Para ela, “é preciso uma série de instituições do Estado, do setor social, da academia, de diferentes grupos de interesse, que sejam parte dessa distribuição equitativa dos recursos, que neste caso é o solo, que, recordemos, tem uma função social. Não é uma mercadoria”.

Bagnera propõe a valorização do solo urbano a partir da incorporação de infraestruturas e equipamentos da terra. “Isto é, a partir da geração de processos de organização coletiva por meio de cooperativas de habitação, grupos ou organizações sociais, que empreendam seus próprios processos de urbanização e dotação de infraestruturas para alicerces,que adquirem de forma coletiva”, acrescentou.

“Isso fundamentalmente com a participação do Estado, promovendo políticas inclusivas de acesso a serviços e contribuindo para a geração de convênios urbanísticos de articulação público-privada”,prosseguiuBagnera.Essas políticas “tendem a reduzir os custos das infraestruturas, aportando terras de domínio fiscal, ou a partir da produção de solo urbano, executado como uma ação direta de responsabilidade estatal”, concluiu. Envolverde/IPS